Por Felipe Aguiar*

Há 17 anos, o dia 29 de janeiro ganhou um novo significado. Em 2004, o Departamento DST, Aids e Hepatites Virais do Ministério da Saúde, em parceria com lideranças do movimento trans, lançou a campanha “Travesti e respeito”. A ação federal levou 27 transexuais e travestis ao Congresso Nacional, em Brasília. A partir da primeira ação nacional de conscientização sobre a diversidade e o respeito às pessoas trans e travestis, o 29 de janeiro ficou conhecido como o Dia Nacional da Visibilidade Trans. Esse dia histórico para o movimento é uma marca da luta diária pelo respeito e por suas vidas.

Durante essa caminhada de luta, algumas reivindicações já foram alcançadas. O uso do nome social foi uma das principais conquistas da população trans. A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) dada em 2018 deu direito às pessoas trans de poderem usar os nomes com os quais se identificam. Ela garantiu a retificação de nome e gênero no registro civil sem necessidade de uma autorização judicial.

Uma das primeiras vitórias, no entanto, ocorreu bem antes, em 2008. A partir deste ano, passou a ser realizada a cirurgia de redesignação sexual pelo Sistema Único de Saúde (SUS). A acessibilidade abriu portas, mas não resolveu todos os problemas. O número de procedimentos ainda não atende à demanda da população, a ponto de existir uma longa lista de espera para realização da cirurgia. Em janeiro de 2020, após anos de discussão, o Conselho Federal de Medicina reduziu a idade mínima para a realização do procedimento – de 21 para 18 anos.

As cotas para pessoas trans é um outro marco do movimento. Foram criadas cotas para que estudantes trans tivessem acesso às universidades públicas. No entanto, a falta de aceitação e acolhimento e a violência enfrentada por elas durante a adolescência – seja nas famílias ou dentro dos ambientes escolares – geram obstáculos que levam ao alto índice de evasão escolar. Dados da Rede Trans apontam que cerca de 82% das mulheres transexuais e travestis abandonam o ensino médio entre os 14 e os 18 anos.

As cotas também se estendem para a política. A decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que estabeleceu por uma obrigatoriedade mínima de 30% de candidaturas femininas abrange as mulheres trans e travestis. As eleições de 2018, por exemplo, tiveram um número recorde de candidaturas de travestis ou transexuais. De acordo com a Antra, foram mais de 50, número dez vezes maior do que em 2014. O resultado reflete o empoderamento da ocupação de mulheres trans na corrida eleitoral.

A retirada da transexualidade da lista de transtornos mentais da Classificação Internacional de Doenças (CID), da Organização Mundial da Saúde (OMS) também foi uma vitória para a comunidade. Ainda nesse embate contra o preconceito e os altos índices de homicídios de pessoas trans no Brasil, houve a criminalização da transfobia. Em junho de 2019, o STF decidiu que atos homofóbicos e transfóbicos passariam a se adequar à Lei 7.716/1989, a qual define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor (racismo).

Apesar desses 17 anos de avanços, o Brasil ainda é o país que mais mata pessoas transexuais e travestis no mundo. De acordo com a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), só nos 10 primeiros meses de 2020, 151 pessoas trans foram assassinadas no Brasil – 22% a mais que o total de 2019. Dentre as vítimas, 78% foram identificadas como negras (pretas e pardas). O dossiê da Antra ainda mostra que 43% dos homicídios aconteceram na região Nordeste. 2020 foi marcado pelo silêncio sobre o aumento no número de mortos. Apesar dos dados alarmantes, nenhuma campanha ou ação nacional foi anunciada pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, pasta na qual se encontram as políticas federais voltadas às minorias.

Algumas vozes do movimento baiano
O movimento trans baiano é repleto de referências na busca pela ampliação dos direitos e da igualdade. O Me Salte/CORREIO conversou com algumas dessas pessoas com o objetivo de contar a sua trajetória de luta e vida. Ser ouvido é o primeiro passo para a mudança e os entrevistados a seguir tem tentado ganhar cada dia mais espaço para que as suas vozes e de tantas outras pessoas possam ser escutadas.

MILLENA PASSOS
Com uma trajetória de 27 anos nos movimentos sociais, Millena Passos declara que acha necessária uma “unificação dos movimentos”. A jornada dela dentro do movimento negro e LGBTQIA+ forjaram esse pensamento. Para Millena, é através dessa união de forças que a comunidade pode avançar. “Nunca esqueço desse dia”, afirma a ativista sobre o histórico dia 29 de janeiro de 2004. Em contrapartida, ela faz questão de dizer que “o dia da visibilidade trans é todo dia.” De acordo com ela, a conquista dos direitos é fruto de uma luta diária. Além do dia 29, ela também pontua o Dia da Mulher como um dia bem importante.

A ativista não deixa de falar das dificuldades enfrentadas. “A luta é árdua”, declara. Millena explicou que é um embate desde muito nova. Ela conta que a época do colégio foi bem difícil. “Não é fácil ser diferente”, explica. A militante menciona a sua gagueira como resultado das violências enfrentadas quando nova, um resultado do preconceito. No entanto, ela afirma que sempre procurou se rodear de amigos e nunca deixou de enfrentar o preconceito. “A dor me fez vencer”, conclui.

Milena Passos Foto: Acervo Pessoal

Millena Passos foi a primeira mulher trans do Brasil a trabalhar numa Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM). Ao falar de sua trajetória dentro da SPM, ela destaca os olhares tortos e os estigmas cobrados pela sociedade. A ativista diz orgulhosa que, aos poucos, foi provando sua competência e desconstruindo o preconceito. Como um dos maiores dilemas enfrentados pelas pessoas trans e travestis, Millena usa a sua história na secretaria para ilustrar a dificuldade do mercado de trabalho. Por isso ela define como fundamental o empoderamento das pessoas. “É o começo de tudo”, afirma Millena.

JOÃO HUGO
João Hugo é um homem trans preto e de axé. O estudante de comunicação social faz questão de pontuar cada uma dessas características. “Acho importante marcar esse lugar”, explica João. Com 27 anos, ele trabalha com audiovisual e estuda está se habilitando em Produção Cultural na Faculdade de Comunicação da UFBA. O ativista, que começou sua caminhada há cerca de dez anos, está envolvido, principalmente, com as questões de saúde e empregabilidade das pessoas trans.

Apesar de jovem, a trajetória de João é repleta de conquistas em prol das questões LGBTQIA+, em especial nas lutas pelos direitos trans. Ele participa do Comitê Técnico Estadual de Saúde Integral da População LGBT da Bahia, produziu a cartilha da Defensoria Pública, “Adequei meu nome e gênero. E agora o que eu faço?”, com Ariane Senna e Bruno Santana; participou da construção dos mutirões de Retificação de Nome e Gênero, tanto pela Defensoria como pelo Ministério Público e é um dos idealizadores e coordenadores da Casa Aurora – Centro de Cultura e Acolhimento LGBTQI+. O centro, que é uma iniciativa privada, foi a primeira casa de acolhimento do estado da Bahia. Ela atende jovens de 18 a 29 anos em situação de vulnerabilidade social ou violência.

João Hugo Foto: Acervo Pessoal

Uma característica de João é o orgulho de quem ele é e dos espaços que ocupa. Ele é um homem trans que vem de uma família com pessoas LGBT. “Acho que a sigla é completa lá (na família)”, comenta. Ele é filho de santo de Thiffany Odara, mãe de santo travesti, e faz parte da associação religiosa do Terreiro Oya Matamba. Como comunicador, faz questão de tornar os discursos os mais iguais que consegue. “Faço o possível para levar informação para pessoas trans”, complementa. João concentra boa parte de sua luta nas pautas de saúde e empregabilidade. Ele ajudou na construção do Ambulatório para Travestis e Transsexuais da Sesab, que fica alocado na CEDAP. Atualmente, ele colabora para o projeto “Chama pra dançar”, no qual o intuito é a produção de um game/treinamento para colocar as pessoas trans no mercado de trabalho.

PAULETT FURACÃO
“O nome Paulett surgiu de uma violência transfóbica”, declara Paulett. A primeira transexual a assumir um cargo público no Governo da Bahia explica que sua identidade surgiu na adolescência. Ela conta que o nome Paulett Furacão é fruto de uma marca da violência que ela decidiu transformar em força. Ela ainda brinca que o sobrenome vai muito além da imagem impressionante do fenômeno natural mostrado no filme dos anos 1990. O que fica claro ao ouvir Paulett falar sobre sua vida e trajetória é que ela é a própria força da natureza.

Paulett atualmente é assessora parlamentar da deputada Olívia Santana, mas ela conta que a sua luta começou há anos. O ativismo dela começou em 2004, com a campanha do Ministério da Saúde. Logo no início dessa jornada de luta, ela perdeu uma amiga pela violência transfóbica, o que impulsionou ainda mais a sua busca por justiça e igualdade. Coordenadora da Associação LGBT Laleska D” Capri, Paullet diz que “acreditava na militância” como um caminho para mudanças concretas e justas.

Foto: Acervo Pessoal

Paulett é uma referência em abrir as portas para outras mulheres trans. Ela foi a primeira coordenadora trans da Secretaria de Justiça da Bahia, a primeira trans a trabalhar com o enfrentamento de tráfico de pessoas na Bahia, a primeira trans na Assembleia, primeira estudante trans da UFBA, no curso de Pedagogia, entre outras primeiras vezes. Ela também participou da campanha do Google em parceria com a TRANSarau, “Respeita Meu Nome”. Quando perguntada sobre sua marca no movimento, Paulett diz que fica feliz pelo caminho que trilhou e afirma que a luta é diária. “Sou uma militante e sempre vou ser”, afirma com orgulho.

DIEGO NASCIMENTO
Diego é potência. Seja em sua fala ou no que sua trajetória representa, ele traz consigo uma força tão natural e que o faz ser um expoente para o movimento. Diego Nascimento começou o seu caminho nos movimentos sociais com 15 anos. Hoje, com 20, cursa Direito na UNEB. Sua fala envolvente e boa argumentação desenham a paixão do jovem pelo ofício. Quando perguntado sobre a interferência do ativismo nesse caminho, ele afirma que “o ativismo foi crucial para que o direito se impusesse” em sua vida. Diego faz questão de ressaltar que a área sempre o encantou desde pequeno. “Não consigo me ver fazendo outra coisa”, conclui.

Diego Nascimento Foto: Acervo Pessoal

Além desse salto na direção do direito, o ativismo também mostrou para Diego que ele, um homem trans negro e de periferia, poderia ocupar espaços como o do Direito. Depois de participar do movimento feminista e LGBT, o estudante já passou pelo Instituto Brasileiro De Transmasculinidade (Ibrat), fundou, em 2016, ao lado de outros ativistas, o coletivo De Transs Pra Frente, e participou da Rede Nacional de Adolescentes LGBT da Unicef. Com o acúmulo dessas experiências, Diego tem um objetivo muito claro em sua vida, trabalhar na Defensoria Pública. Mesmo entendendo as limitações do direito, ele afirma que sua importância não pode ser menosprezada. “(O direito) é uma ferramenta de transformação do mundo”, afirma o jovem.

Quando questionado sobre ser uma referência para o movimento, Diego afirma que “representar (o movimento) traz uma responsabilidade de estar em consonância com o que tem acontecido de acúmulo político dentro do movimento que componho.” O ativista faz questão de explicar que é recente a organização política do movimento de homens trans. Mas ele afirma se sentir orgulhoso por sua caminhada e por ser uma referência tão jovem. A sua trajetória reforça para ele e outros tantos onde as pessoas trans podem chegar através das conquistas do movimento.

GLOSSÁRIO*
Uma das formas de combater o preconceito é tornar próxima a realidade que se é atacada. A visibilidade das pessoas trans e travestis é um passo fundamental nesse processo, mas a falta de entendimento de certos conceitos, como identidade de gênero e orientação sexual são fatores marginalizantes dessa parcela da população. A garantia de uma inclusão também vem pelo conhecimento. Por isso, o Me Salte/CORREIO preparou um glossário com alguns termos necessários para a manutenção do respeito e da inclusão das pessoas trans.

Gênero: é o conceito associado à construção social do sexo biológico. Ou seja, são os contextos e às reflexões em que as dinâmicas de relações sociais entre homens e mulheres, em sua diversidade.

Identidade de gênero: como uma pessoa se reconhece socialmente. A identificação vai além de questões biológicas do nascimento. A diversidade das identidades de gênero levam à outras terminologias:
cisgênero é a pessoa que se identifica com o sexo biológico designado no momento de seu nascimento;
transgênero é a pessoa que se identifica com um gênero diferente daquele atribuído no nascimento;
travesti é a pessoa que nasceu no gênero masculino, mas se entende pertencente ao gênero feminino, mas não reivindica a identidade “mulher”;
não-binário é a pessoa que não se identifica completamente com o gênero atribuído ao nascimento e nem com outro gênero;
agênero é a pessoa que tem identidade de gênero neutra.

Orientação sexual: como uma pessoa se sente atraída – física, romântica e emocionalmente. A diversidade dessas orientações também levam à outras terminologias:
homossexual é a pessoa que sente atração pelo mesmo sexo;
heterossexual é a pessoa que sente atração pelo sexo oposto;
bissexual é a pessoa que sente atração por ambos sexos;
pansexual é a pessoa que a atração não é delimitada pelo sexo;
assexual é a pessoa que não sente atração sexual.

Transfobia: termo utilizado para designar o ódio, repulsa, aversão, intolerância, medo desproporcional persistente ou até mesmo a prática discriminatória contra transexuais e travestis ou a transexualidade, como expressão de gênero.

  • os significados dos conceitos foram baseados nas definições de:
    No glossário LGBT da Sesab;
    No glossário LGBT+ produzido pela Natura, em 2019;
    Nos conceitos do Vittude Blog
  • Com supervisão do chefe de reportagem Jorge Gauthier
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