Vinícius Nascimento
Instagram: @eusouvinino
A quantidade de portas fechadas na cara de Amanda Silveira, 26, deixaram alguns traumas. Entre eles, o fato dela não mandar fotos para ninguém, a não ser por extrema necessidade. Ela topou conversar com o CORREIO desde que nenhuma foto dela fosse veiculada sob hipótese alguma na reportagem. Contou que já colocou currículo em lojas, mercadinhos, call centers, tentou até trabalho braçal em açougues, mas a resposta foi quase sempre a mesma: ‘obrigado pelo interesse, mas não vamos te contratar’. Isso quando havia resposta.
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Essa é a realidade de uma mulher negra e transgênero no Brasil, país onde 90% da população travesti e transexual tem a prostituição como fonte de renda, segundo levantamento da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra).
A questão do mercado de trabalho para mulheres trans e negras é tema de uma das mesas da 19ª Parada do Orgulho LGBTQIA+ da Bahia, que acontece virtualmente no próximo dia 5 de dezembro ( sábado), ao vivo, nos canais “Me Salte” e Jornal CORREIO* (Instagram, Facebook e Youtube), a partir das 18h. O debate “Travestis e Transexuais negras não trabalham só em salão” será conduzido pela vereadora eleita da cidade de São Paulo, Érika Hilton, e pela artista e educadora Inaê Leoni.
Violência e rejeição no mercado
A ONG Transgender Europe cita que uma das principais causas dos altíssimos índices de violência contra pessoas transgênero é justamente a exclusão do mercado de trabalho. Até o último dia 31 de outubro de 2020, foram 151 assassinatos de pessoas trans no Brasil. Número superior em 22% às 124 mortes violentas registradas em 2019 pela Antra. Todas as vítimas expressavam o gênero feminino, sejam travestis ou mulheres trans.
A Bahia é o terceiro estado com maior número de assassinatos de trans e divide a posição com o estado vizinho, Minas Gerais. Registrou 17 crimes só neste ano. Os dois estados dispararam quando se compara com os números do ano passado. A Bahia pulou de 5 para 17, ou 240% de aumento. Minas saiu de 4 para 17, ou 325% de aumento. Em 2020, São Paulo lidera com 21 assassinatos e o Ceará aparece na segunda colocação, registrando 19.
Sobre a relação entre violência e mercado de trabalho, o Relatório da violência homofóbica no Brasil, publicado pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH), aponta que a transfobia faz com que esse grupo “acabe tendo como única opção de sobrevivência a prostituição de rua”.
A baiana Ariane Senna, 29, ficou conhecida por ser candidata ao cargo de vereadora nas últimas eleições. Primeira psicóloga trans formada no estado, foi expulsa de casa quando aos 13 anos e a única alternativa que encontrou para sobreviver foi fazer programas arranjados na orla de Salvador. Nesse período, foi estuprada, assaltada e até atropelada.
“Sofremos diversos tipos de violência, que começam ainda na infância. Muitos jovens trans são colocados para fora ainda na juventude, ficam no relento. Aí ficam duas alternativas: ou a prostituição ou a morte. E é engraçado como as mesmas pessoas que não te aceitam durante o dia estão na orla para te procurar durante a noite”, diz Ariane, que aos 17 anos, revela, chegou a tentar ‘burlar’ o sistema e se apresentar como um homem gay em algumas empresas. Mas ela se olhava no espelho e não conseguia se ver e, muito por conta disso, suas experiências com carteira assinada não tinham mais de um ano de duração.
A duras penas, Ariane conta que concluiu o ensino médio. Decidiu que tinha de fazer uma faculdade. Mais um ato de resistência que concluiu com direito a um certificado de honra ao mérito por ser a melhor aluna da turma. Ela se formou em 2016.
Mestranda em Estudos Étnicos e Africanos pelo Centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade Federal da Bahia (CEAO/UFBA), onde desenvolve sua pesquisa sobre “A Solidão da Mulher Trans, Negra e Periférica”, ela aponta que mulheres trans e negras não são vistas como humanas e que esse processo de solidão acontece nas relações afetivas, mercado de trabalho e em todos os setores da vida. E tudo isso mata essas mulheres diariamente.
Perfeição contra o preconceito
Inaê Leoni, que é professora da rede municipal de São Francisco do Conde, afirma que a transgenereidade chega antes dela em qualquer espaço. E que, por esse fator, sente que precisa ser excelente e perfeita em todos os pontos para conseguir ter oportunidades. Emocionada, ela conta que houve situações em que particípou de uma roda de conversa sobre homofobia – e, inicialmente, sentiu que o nome da roda precisava falar de transfobia para contemplá-la – e percebeu um tom de deboche quando falava do seu currículo de gestora e mediadora cultural, além de arte-educadora.
“Falavam num tom de ‘nossa, quanta coisa’, e não é tanta coisa. Nem o direito de ter uma trajetória profissional as pessoas trans têm. Quando eu coloco que sou uma mulher trans negra, parece que esses dois marcadores sociais servem para os outros deslegitimarem a minha trajetória, a minha formação. Caso eu consiga qualquer oportunidade, eu tenho que ser a mais perfeita em todos os sentidos”, afirma Inaê.
O sentido de perfeição também é muito pesado para pessoas trans. Inaê aponta que normalmente a perfeição é um sinônimo de competência, mas quando se trata de pessoas transgênero, a exigência é que de fato não haja qualquer erro.
“As pessoas olham para você e o que vê são erros. A impressão que tenho é que o mercado trata nós mulheres trans e negras enquanto corpos alienígenas e por isso não tem interesse em encaixar, em empregar, porque o que temos a oferecer nunca vai ser suficiente”, completa a professora e artista.
Primeira mulher trans do Brasil a prestar serviço na Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM), Millena Passos afirma que é importante discutir o porque de mulheres trans e negras só conseguirem trabalho em áreas específicas, como os salões de beleza, a prostituição e, em alguns casos, na área de enfermagem.
“Já morreu muita trans e travesti no meu colo. Muita gente jovem. Eu tenho fotos do início de minha atuação no movimento em que sou a única viva. Dediquei toda a minha atuação longe das redes sociais, nas ruas, e sonho em ver um mundo em que nós, pessoas TT (Travestis e Transexuais) não seremos julgadas por nossa aparência ou por nossa sexualidade”, deseja Millena.
Para ela, uma mudança de mentalidade e de realidade para as mulheres trans negras passa por um entendimento de que elas fazem parte da maioria. Num mundo em que as mulheres, as pessoas pretas e as pessoas trans se unirem e unificarem um discurso nas lutas, “não terá para ninguém”, acredita. E, dessa maneira, será possível construir cidades em que pessoas trans ocupem cargos de poder e, a partir disso, puxam outras pessoas para cima – quebrando problemas históricos de opressão, violência e negação de direitos.
O projeto Diversidade tem realização do GGB, produção Maré e parceria e criação de conteúdo Correio/Me Salte e Movida; e patrocínio do Grupo Big e Goethe Institut.
SERVIÇO:
19ª Parada do Orgulho LGBTQIA+ da Bahia
Quando: 5 de dezembro, sábado;
Horário: Das 18h até 20h.
Onde: ao vivo nos canais “Me Salte” e Jornal CORREIO* (Instagram, Facebook e Youtube);
PROGRAMAÇÃO COMPLETA:
Debates:
*Mesa 1 – Bichas pretas
Alan Costa – Formado em Letras Vernáculas pela UNEB, atua como produtor cultural e artístico na cena soteropolitana.
Ismael Carvalho – Criador de conteúdo digital, cofundador e diretor de criação da Preta Agência de Comunicação.*Mesa 2 – Negras, lésbicas e masculinizadas
Jandira Mawusí – Pedagoga pela UNEB, idealizadora do Coletivo Merê, é uma das representantes da Caminhada Contra o Ódio e o Racismo Religioso que acontece há mais de 15 anos em Salvador.
Bruna Bastos – Integrante do grupo de pesquisas Rasuras UFBA, pesquisa e estuda Letramentos de Reexistência produzidos por lésbicas negras. É idealizadora da página @sapatonaaentendida onde dialoga sobre lesbianidade e Afroperspectiva.*Mesa 3 – Transexuais e travestis negras não trabalham apenas em salão
Érika Hilton – Primeira vereadora trans e negra eleita de São Paulo. A mulher mais votada da cidade com 50.508 votos, pelo Psol.
Inaê Leoni – Mulher trans, negra, baiana de Salvador. Licenciada em Teatro da UFBa, em 2010, começou a estudar canto de modo sistemático.*Performances artistíticas:
Matheuzza (atriz, educadora e pesquisadora nas questões de raça, sexualidade e gênero); Bagageryer Spilberg (apresentadora, transformista e realizadora de concursos de beleza); as cantoras Doralyce e Josyara; o rapper Hiran, uma das maiores identidades do rap nacional; e Malayka SN, que é DJ, visual artist e drag.
*Glossário LGBTQIA+
Lésbicas – Mulheres que sentem atração afetiva/sexual por outras mulheres;
Gays – Homens que sentem atração afetiva/sexual por outros homens;
Bissexuais – Pessoas que sentem atração afetivo/sexual por homens e mulheres;
Travestis, Transexuais e Transgêneros – Não se relaciona com a orientação sexual, mas identidade de gênero. Corresponde às pessoas que não se identificam com o gênero atribuído em seu nascimento;
Queer – Pessoas que não se identificam com os padrões cis e heteronormativos;
Intersexo – Pessoas cujas combinações biológicas e desenvolvimento corporal – cromossomos, genitais, hormônios, etc. – não se enquadram na norma binária (masculino ou feminino);
Assexuais – Pessoas que não sentem atração sexual por outras pessoas;
Interseccionalidade – Estudo da sobreposição ou intersecção de identidades sociais e sistemas relacionados de opressão, dominação ou discriminação;
Cisgênero – Pessoas que se identificam com o gênero atribuído em seu nascimento;
*Fonte da pesquisa: Educa Mais Brasil