Autora do livro ‘Amores Invisíveis – Casais longevos da diversidade’ (Ed. de Cultura), a psicóloga Déa E. Berttran, mestre e doutora em psicologia clínica pelo Instituto de Psicologia da USP, conversou com o Me Salte sobre preconceito e LGBTfobia.

Também deu dicas para famílias com pessoas LGBTQIA+ e para famílias homoafetivas lidarem com o preconceito. Confira entrevista completa.

Vivemos numa sociedade onde cada vez mais o preconceito tem ganhado voz. Como as famílias com pessoas LGBTQIA+ podem se estruturar para combater essas opressões?

Sim, o preconceito tem ganho espaço mas, com ele, também a liberdade da expressão amorosa – nunca pudemos ver tantos casais homoafetivos enamorados pelas ruas; nas telas sejam dos cinemas, televisões ou smartphones, muitas produções sobre o universo LGBTQIA+ são exibidas, criando um imaginário de representações culturais, exemplos de vivências que podem vir a ser veículos de identificações desse grupo. Ou seja, costumo dizer que, além dos dois lados da moeda, ainda existe a sua borda… Nunca um fenômeno social é hegemônico, vozes dissonantes a ele sempre irão existir – e a resistência de quase metade da população ao anacronismo político atual é acachapante!

Acredito que preconceito se combate com conhecimento – o primeiro deles, de que a sexualidade humana se expressa de diferentes formas, a heterossexualidade é somente uma delas. Se a elegemos como única e exclusiva, em um sistema heteronormativo, ou seja, que relega outras expressões à marginalidade, isso é algo a ser conhecido para ser transformado, já que aprisiona parcela de sua população a se perceber diferente, o que não é o caso.

Famílias devem ser lugares de pertencimento, de transmissão de legado, portos seguros em que as pessoas se sintam fortalecidas para que possam ir à luta – no caso dos LGBTQIA+, frequentemente acontece o contrário: a família vem a ser o primeiro e mais ferrenho palco para suas batalhas. Cabe a ela o amor, a aceitação, o fortalecimento emocional de seus integrantes.

Com isso, sua estrutura será suficientemente boa para a criação de laços afetivos com mais compreensão e aceitação do outro.

Em 2019, a regulamentação dos casamentos entre pessoas do mesmo sexo completa cinco anos do Brasil. Contudo, ainda há muita resistência de grupos religiosos quanto ao reconhecimento social dessas uniões. O que pode ser feito para melhorar isso?

A regulamentação foi possível por uma brecha jurídica, e não por constar na Constituição – essa é a batalha! Desde 1993 que tramita, via Marta Suplicy, a alteração desse pressuposto, o de que um casal seja constituído exclusivamente por um homem e uma mulher. Na psicologia/psicanálise essa postura já foi superada, hoje a diferença sexual não é mais baliza e, sim a alteridade, o um e o outro que existe no par.

Por outro lado, existe a falsa crença de que a heterossexualidade seja ‘natural’, o que não é verdade – a homossexualidade existe em todo o reino mamífero, por exemplo! O problema é que as pessoas não estão dispostas a se abrirem ao conhecimento, é mais fácil permanecer onde se está, mesmo que isso signifique passividade ante a ignorância.

Mudar de opinião requer esforço, é mais fácil julgar e afastar aquilo que pode vir a parecer como ‘estranho’, vá lá se saber o que poderá acontecer… As pessoas têm medo também de sua própria sexualidade, as gerações passadas a desenvolveram sob forte repressão, ainda presente nos dias atuais.

A religiosidade é item que integra o conceito de humanidade, mas os sistemas religiosos têm que ser libertadores, e não opressores; religião é de foro íntimo e pertence ao privado, não ao público. Eu me apavoro com o crescimento de correntes anacrônicas, ignorantes, que fazem uso do desespero das pessoas e de sua fragilidade emocional para fins espúrios. Infelizmente seus ramos também se imiscuíram nos ambientes políticos e governamentais, o que tem gerado muito atraso na resolução de proposições, vire e mexe algum político homofóbico e machista retorna com a absurda ‘cura gay’, até mesmo com enfrentamento ao próprio Conselho Federal de Psicologia – aliás, existem psicólogos absolutamente reacionários! Meu livro também a eles se destina, para que possam acolher o grupo LGBTQIA+ com respeito às diferenças que possam vir a apresentar.

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Editora: De Cultura; Edição: 1ª (26 de novembro de 2018) | Preço: 33,64

Eu faço a minha parte, seja no consultório, nas aulas que dou na São Judas/Campus Unimonte, em que, por meio de disciplinas como Psicologia Social, há espaço para a crítica ao status quo e à possibilidade de se dar atenção a todas as vozes, não somente algumas delas.

Você também faz a sua, e este jornal, ao me possibilitar este espaço de fala e a divulgação de meu livro.

Costumo dizer que eram mais de quarenta o número de evangelhos – foram escolhidos apenas quatro deles. Os outros caíram no esquecimento, denominados de apócrifos e condenados ao ostracismo. Aí é que está: o conhecimento precisa ser divulgado!

Como os processos que envolvem a heteronormatividade podem atrapalhar as uniões homoafetivas?

Nascemos sob este sistema, o da heteronormatividade, o que significa que existem papeis sociais a serem cumpridos respectivos à conformidade de sexo e gênero (fêmea = mulher = feminino; macho = homem = masculino), ou seja, à identidade de gênero, bem como à direção que nossos interesses sexuais e afetivos devem se dirigir, nossa orientação sexual – se mulher, ao homem; se homem, à mulher. Qualquer característica que não esteja em conformidade com este modelo é considerada marginal, errada, desviante – e isso ainda hoje!

Maria Luiza Heilborn, antropóloga que prefacia meu livro, fala em hegemonia masculina, quer dizer, os modelos de masculinidade que não são correspondentes ao de homem viril, forte, provedor, são condenados; neste universo, a violência à mulher e ao feminino, de forma geral, é justificada, nada pode vir a afrontar este ‘macho’ alfa, seja ter levado um chega para lá de alguma mulher, seja ser paquerado por outro homem. Daí termos o assassinato da comunidade LGBTIA+ na impressionante estatística de uma morte a cada 20 horas.

Este é um dos aspectos, são vários! Também se pode considerar o fato de a falta de pertencimento e de aceitação familiar vir a produzir o afastamento dos LGBTIA+ que, dizem as pesquisas, abandonam suas cidades natais e se dirigem para as grandes capitais, o que os deixa sem rede de apoio. Muitas vezes o grupo de amigos, o gueto, substitui o grupo familiar; hoje já existe mais aceitação, homossexuais e heterossexuais convivem de forma amigável, algo que a geração dos casais que entrevisto não vivenciou, pois a vida dupla era condição quase que de sobrevivência para essas pessoas.

Enfim, outro dia, mesmo, conversando com uma colega, perguntei-lhe: “Para você o certo é a relação entre um homem e uma mulher?”. Ela respondeu que sim. A partir daí, se é esse o ‘certo’, tudo o mais está ‘errado’, ou seja, é uma visão polarizada e restrita da sexualidade humana e de suas amplas possibilidades. Quando a pergunta é: “Por que você é heterossexual?”, normalmente não existem respostas – a orientação sexual é construída tanto quanto a tal identidade de gênero. Não nascemos sabendo quem somos: nos subjetivamos ante um contexto sócio-histórico-cultural, já prontinho para nos recebermos. Ter consciência disso é fundamental para que possamos, realmente, saber de onde partimos a caminho de nossas escolhas. Só assim paramos de ‘seguir o fluxo’ e realmente nos tornamos protagonistas de nossas vidas.

O senso comum sempre coloca os relacionamentos gays em ambientes de promiscuidade e infidelidade.

Ah, essa é uma das marcas de meu livro: mostrar que isso não é verdade, é fake!

Claro está que os LGBTIA+, até os últimos anos, por não terem acesso à adoção e não haver tecnologia reprodutiva, estavam destinados a não serem pais e mães, a menos que o fizesse por caminhos heterossexuais. Então, suas conquistas financeiras lhes eram exclusivas, possibilitando uma vida diversa a da parentalidade, cujo investimento no crescimento e desenvolvimento das crianças requer contenções financeiras – além da dedicação aos filhos, não há tempo livre!

Quando o mercado descobriu o poder de tiro desse grupo é que se lançou o termo GLS (Gays, lésbicas e simpatizantes) pela publicidade, identificando um perfil de público que tinha liberdade e dinheiro para gastar consigo mesmo. Tanto que se criou o ‘viver gay’, descompromissado e sem laços familiares muito próximos. Daí ser considerado promíscuo, como no século XIX era visto como ‘perverso’, ou seja, um ser que só visava o seu próprio prazer, sendo condenado por não querer procriar, por exemplo.

Mas tanto isso não é verdade que, nos anos 1980, quando o HIV começou a ceifar vidas e começaram os problemas de patrimônio quando um dos integrantes do par falecia e a família se assenhorava de seus bens, sem reconhecer os direitos do parceiro, é que se descobriu a quantidade que havia de casais homossexuais.

Os casais que entrevistei vivem sob a fidelidade. São casamentos românticos, em que há o desejo de simetria, de igualdade, de democracia, planos e projetos de vida em comum. O cuidado ao outro é um dos elementos fundamentais que encontrei nesses casamentos longevos, e isso exclui a promiscuidade.

Mas há de se convir que existem características próprias a esses casais, como a de, por exemplo, ser a sexualidade mais preponderante nos pares de homens do que no de mulheres – pesquisas indicam ser o sexo um elemento de muita vitalidade quando comparado aos casais seja de heterossexuais, seja de lésbicas. Aliás, a essas últimas existe até um termo, o de ‘bed death’, ou seja, cama morta – parece que preferem estar juntas em atividades diversas do que praticarem sexo. Talvez esse vigor sexual possa favorecer maior liberdade nos comportamentos sexuais, de forma geral.

Porém, o que tenho visto com base seja na clínica, seja na universidade, é que jovens estão se permitindo a experimentar, o que acho maravilhoso. Assim, poderão se conhecer e, quem sabe, realmente exercer o direito de escolha e de serem o que quiserem ser.

As famílias homoafetivas enfrentam muitas dificuldades quando os filhos estão, por exemplo, na idade escolar. O que pode ser feito para esses momentos sejam menos turbulentos?

Questão complexa que apresenta muitos pontos.

Acredito que a transparência seja um bom caminho, embora se tenha que ter presente que as explicações têm que ser condizentes com a fase de vida dos filhos… Não se deve atropelar uma criança por conta de se justificar! Naturalidade é o caminho, afetos são humanos, expressões amorosas são bem-vindas, não há o que esconder ou negar. Porém, além da confiança, o núcleo familiar também deve prover suas crianças da realidade da vida e, dentro dela, de elementos como a maldade, a hipocrisia, o medo, a agressão; que, por não corresponderem à maioria da população, seu modelo familiar pode vir a ser alvo de críticas e ameaças. Tal como o racismo; tal como os que migram para culturas diversas das suas.

Acredito que o fundamental seja os filhos se sentirem de fato aceitos por aqueles que deles cuidam, amados pelo que são, e não por corresponderem às expectativas dos que os geraram, sabendo que ali encontrarão um porto seguro, lugar de refazimento e de fortalecimento.

Acredito que seja fundamental a participação dos pais ou cuidadores na escola, em suas reuniões, nos encontros entre pais e mães, para que a escola não seja um ambiente afastado e, sim, próximo.

Um dos casais de mulheres de minha pesquisa trazia o filho de seu casamento anterior, heterossexual. Nunca escondeu a verdade de seu filho, que sempre conviveu com seus amigos e amigas e, assim, via as relações homoafetivas com naturalidade – quando elas comemoraram 25 anos de casadas, foi com ele e sua namorada que apagaram as velinhas do bolo. É possível uma convivência social harmoniosa, sim, acredito nisso.

Outro aspecto, se houver possibilidade, a escolha de uma escola de perfil mais libertário, em que seus professores não estejam tão vinculados a sistemas religiosos anacrônicos e coercitivos, por exemplo.

Essa é última semana do especial LGBT O Quê?. Veja conteúdos extras aqui

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