Por Alan Pinheiro, do Correio 24horas
Na galeria seleta de craques que passaram pelo futebol brasileiro, jogadores que se destacaram pela qualidade com a bola nos pés ou pelo carisma fora de campo deixaram uma marca no imaginário do torcedor do Brasil: o número da camisa. No entanto, à mesma medida que a camisa 10 é associada ao rei Pelé – ou a oito com Bobô pelos torcedores do Bahia – nota-se a ausência de jogadores que utilizem a camisa 24, reflexo da homofobia estruturada no futebol brasileiro.
“Eu nasci no dia 24 e compreendo bem o estigma [com o número] desde criança. Quando eu ia bater baba ou em outras situações tinha uma certa zoação por conta da minha data de nascimento. Cheguei até a esconder a data do meu aniversário na escola. Eu dizia que o meu aniversário era um dia antes por conta do 24”.
O relato de Roberto Júnior, atual presidente do Orgulho Rubro-negro – torcida LGBTQIAPN+ do Vitória – exemplifica a relação entre a numeração e um significado homofóbico que está na estrutura da sociedade brasileira. Segundo o torcedor, já aconteceu de ser chamado atenção no Barradão por ter uma camisa com o número 24 nas costas.
“Ele me parabenizou pela camisa com as cores LGBT, mas quando viu [o número] disse ‘esse número aí eu não gostei não’. Como se as cores da comunidade LGBT para ele fossem interessantes, mas o problema era o 24”, completou.
Na linha do tempo dos fatos, a relação entre o futebol e a homofobia não tem um marco definido. Quando o paulistano Charles Miller chegou da Inglaterra trazendo duas bolas de futebol, em 1894. o país já conhecia um dos mais conhecidos jogos de azar que surgiram em terras tupiniquins: o jogo do bicho.
Em 3 de Julho de 1982, o barão João Batista Viana Drummond – fundador do Jardim Zoológico do Rio de Janeiro – criou uma “bolsa de apostas” com 25 animais do local para a promoção do zoológico à sociedade carioca. Dentre as quase três dezenas de bichos que figuravam nas cartelas, o penúltimo deles era o veado, animal popularmente relacionado ao homem gay.
“Como meio de estabelecer a concorrência pública, tornando frequentado e conhecido aquele estabelecimento que faz honra ao seu fundador, a empresa organizou um prêmio diário que consiste em tirar a sorte dentre 25 animais do Jardim Zoológico (…). Cada portador de entrada com bilhete que tiver o animal figurado tem o prêmio de 20$”, dizia um trecho da edição de 4 de Julho de 1892 do Jornal do Brasil.
Desde 14 de abril de 1895, quando o São Paulo Railway, time de Charles Miller, venceu a primeira partida de futebol no Brasil até os dias atuais, a ausência do número 24 nas camisas dos atletas é percebida. Em 2024, a escassez da numeração é vista no Campeonato Brasileiro, onde apenas quatro jogadores vestem o número: Léo Linck (Athletico-PR), Mateus Oliveira (Palmeiras), Anthoni (Internacional) e Thiago Beltrame (Grêmio). Desses, apenas o goleiro da equipe paranaense entrou em campo na Série A.
Na atual temporada, nenhum jogador de Bahia e Vitória utilizou o número 24. Vale destacar que a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) não impõe limite de registro de números como a Conmebol delimita em competições internacionais na América do Sul. Portanto, cabem aos atletas e clubes as escolhas dos números a serem usados nas partidas.
Mesmo em um cenário similar ao futebol profissional, as divisões de base dos clubes brasileiros apresentaram uma melhora. O levantamento realizado anualmente pelo Coletivo de Torcidas Canarinhos LGBTQ+ apontou que, em 2024, o número de equipes que utilizaram a camisa 24 nos jogos da Copa São Paulo de Futebol Júnior teve um pequeno aumento em relação ao ano anterior.
De acordo com os dados apurados a partir das súmulas das partidas, 38 dos 128 times que disputaram a competição tiveram um jogador em campo com o número 24 nas costas. Isso equivale a 29,7% do total, percentual superior ao registrado em 2023, quando 27%, ou 34 times, utilizaram a numeração.
“O número 24 tem sido historicamente associado de forma arbitrária à homossexualidade no Brasil. Essa associação, no entanto, é preconceituosa e discriminatória e tem reflexos nos mais diversos ambientes sociais, sobretudo no futebol”, diz o coletivo em pronunciamento.
Na seleção brasileira, que já contou com craques como Ronaldo, Romário e tantos outros, tem poucos jogadores na história que vestiram oficialmente a 24 amarelinha. O primeiro deles foi Bremer na Copa do Mundo de 2022 – a primeira com um limite de jogadores maior que 23 atletas. Já o segundo pode ser o volante Ederson, que usou o número no amistoso contra o México e foi confirmado com a 24 para a disputa da Copa América.
Respeito à base de Dendê
Longe do futebol profissional, o estigma por trás da numeração “proibida” é visto como uma forma dos times não se associarem com questões LGBTQIAPN+. Quem diz isso é Rodrigo Santos, secretário do Dendê FC, primeira equipe de futebol formada apenas por jogadores LGBT. Na equipe, a camisa 24 é usada por um dos atletas e tem o objetivo de alcançar um novo espaço: ressignificação.
“Sempre há essa tentativa de alguns jogadores usarem essa camisa para mostrar uma forma de não discriminação. Já está enraizado na sociedade, então sempre temos que buscar quebrar essas barreiras. Não só existe a camisa número 24 no nosso time, como outros números que às vezes são vistos de forma preconceituosa”, disse.
Fundado em 2017, o jogador do Dendê acredita que ter um time formado por jogadores LGBTQIAPN+ em Salvador influencia positivamente na luta contra a lgbtfobia. Para ele, o time também é um espaço de acolhimento para pessoas que não se sentirem próximas do futebol. “Mostramos que também podemos jogar futebol, que temos capacidade. Jogamos contra time de homens Cis e ficam impressionados. Estamos ali pelo mesmo objetivo de poder jogar bola, de poder torcer pelo nosso time”, explicou.
Em 2023, sete amigos que amam jogar futebol procuravam ambientes esportivos acolhedores para performar suas identidades e resolveram fundar o Tiêtas Fut7, também formado por atletas LGBTQIAPN+. No último dia 8, a equipe foi campeã invicta da etapa Nordeste da Champions Ligay, competição organizada pelo Dendê FC. No Tiêtas, a camisa 24 é considerada uma das mais importantes, sendo o número que foi utilizado pelo jogador eleito como melhor na Ligay.
De acordo com Honey Mascarenhas, um dos fundadores do time, vestir a 24 tem uma representatividade grande, porque quebra com rótulos preconceituosos. “No ambiente machista do futebol, quebramos paradigmas impostos pelos LGBTfóbicos. Este número mostra que lugar de “viado” é onde ele quiser, dentro e fora de campo. O simples ato de vestir a camisa 24 nos empodera de toda nossa existência, de todo processo de aceitação por qual passamos, é um ato de resistência à LGBTfobia”, afirmou.
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