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Preconceito e agressões preocupam torcedores LGBTQIAPN+ de Bahia e Vitória

Por Brenda Vianna, do Correio 24 horas

“Viado deveria levar ‘pau’ aqui no estádio”, “como é que pode duas sapatonas se beijando com a camisa do time”, “se elas se beijarem, eu quero participar, ou então são putas”. Essas são algumas das frases historicamente ouvidas por parte da comunidade LGBTQIAPN+ que frequenta o Manoel Barradas, o Barradão, estádio do Vitória, e a Fonte Nova, estádio onde o Bahia é mandante os seus jogos, além dos acessos aos dois espaços esportivos.

Apesar dos avanços das torcidas organizadas da própria comunidade, da expansão e garantia de direitos dos torcedores na proteção contra atos de violência e discriminação – especialmente após 2003 quando entrou em vigor o Estatuto do Torcedor (Lei 10.671/2003) – ainda há um longo caminho para que gays, lésbicas, transsexuais, bissexuais, e outros membros da comunidade possam se sentir confortáveis em ambientes majoritariamente heterossexuais onde são comuns os relatos de situações machistas e preconceituosas.

Atualmente,  está em vigor a  Lei Geral do Esporte (2023) que tem o objetivo de ‘adotar as medidas para erradicar ou reduzir as manifestações antiesportivas, como a violência, a corrupção, o racismo, a xenofobia, a homofobia, o sexismo e qualquer outra forma de discriminação, o uso de substâncias ilegais e os métodos tipificáveis como dopagem’. 

Neste 17 de maio,  dia Internacional contra a Homofobia, Transfobia e Bifobia, o Me Salte/Correio inicia a série de reportagens Bola Colorida: o que está por trás da LBGTFobia no futebol.

Roberto Júnior, atual presidente do Orgulho Rubro-negro, torcida LGBTQIA+ do Vitória, precisou ficar longe do Barradão por quatro anos após sofrer uma situação homofóbica próximo ao estádio, o que te deixou paralisado e sem coragem para entrar no Manoel Barradas. “Ouvi em tom de ameaça. Aquilo me assustou, fiquei com receio de continuar lá. Minha alegria foi embora”, relatou Roberto sobre o fato que ocorreu 10 anos atrás.

Assim como o líder da torcida do Vitória, a estudante de nutrição Ana Brito também sofreu, apesar de não ter ficado sem ir ao estádio. No entanto, teve de passar a ir à Fonte Nova com a namorada acompanhada de amigos homens após torcedores tocarem em parte íntimas, alegando que ‘sapatonas não conhecem homens de verdade e por isso desfilavam de mãos dadas’.

 “Eu estava de short, minha namorada também, e sofremos, além do assédio, homofobia porque somos lésbicas. Um chegou a dizer que deveríamos nos beijar na frente deles, pedindo para participar do beijo, ou então nós duas éramos putas”, relembra.

Se para as meninas, que são assumidas, já foi difícil, imagina para Wendel de Queiroz, 20 anos, que cresceu amando o Vitória e descobrindo que também amava homens. Ele, que sempre gostou de futebol por influência familiar, já sabia que estar em um ambiente majoritariamente heterossexual seria um desafio, mas não tinha noção que chegaria ao ponto de ser ameaçado ao criar o Orgulho Rubro-Negro. Ele criou um grupo no WhatsApp para encontrar outros torcedores LGBTQIAPN+, mas o grupo foi invadido por pessoas que ele chama de ‘fanáticos preconceituosos’. Além disso, Wendel foi bombardeado de ameaças particulares. 

Wendel Queiroz – Foto: Acervo Pessoal

 “Vieram no meu privado [nas redes sociais] ameaçar, dizer que sabiam onde eu morava. E realmente, de fato, já tinham descoberto onde eu morava, já tinham descoberto quem era da minha família. E foi muito complicado, porque eu nunca tinha lidado diretamente com esse tipo de ameaça, e muito pela minha idade também. Eu não sabia como reagir, mas ao longo do processo foi muito doloroso”, desabafa o ex-presidente da torcida Orgulho Rubro-Negro.

Ameaça Wendel de Queiroz, ex-presidente do Orgulho Rubro-negro

A internet pode ser aliada, mas também consegue destruir não só a imagem, como também a saúde mental das pessoas. Vitor Biset, maquiador e integrante do Orgulho Rubro Negro, se arrumou para assistir mais uma partida do Vitória e publicou o vídeo estilo “Arrume-se comigo” nas redes sociais. Os comentários maldosos foram tamanhos, como “as galinhas do programa”, mas a situação saiu da bolha do TikTok e entrou na esfera de uma comunidade do BaVi no Facebook.

Por lá, as fotos de Vitor circularam ao ponto dele ser ridicularizado, sofrendo todos os tipos de homofobia, gordofobia, inclusive, dos próprios torcedores do Vitória. 

“Nunca tinha passado por uma situação assim. Logo em seguida, fui em outro jogo e as piadas dentro do próprio estádio aumentaram. Fiquei com medo de voltar ao estádio e só retornei ao Barradão há uns dois anos para cá. [Esse caso] me desmotivou. É delicado demais. Eles precisam respeitar”, lamenta.

Há também casos de homofobia entre torcedores do mesmo time fora do estádio, como ocorreu com a tricolor Inaê Reis, que estava na Estação Acesso Norte e se deslocava para a Fonte Nova. No local, ela precisou ir ao banheiro, mas um homem não quis permitir que a jovem de de 25 anos entrasse no toalete por ser uma mulher lésbica desfem (mulheres não-femininas).

O torcedor, que também iria à Fonte Nova, alegou que Inaê poderia cometer assédio contra a esposa e filha, que estavam dentro do banheiro. “Ele disse que deveria ter um banheiro separado para quem gosta da mesma ‘fruta’, pois poderia ter assédio”. 

Inaê, no entanto, não levou adiante o caso à delegacia mais próxima, e deixou o homem com a família ir para o estádio após a intervenção dos seguranças da CCR Metrô Bahia. 

O que dizem Bahia e Vitória? 
Apesar dos relatos citados nesta reportagem, os comentários dos torcedores foram os mesmos: “não obtive resposta e apoio do clube”. “O processo inicialmente foi muito complicado e o silêncio do clube muito desvantajoso, pois o movimento desde o início repercutiu bastante”, disse Wendel.

O Bahia, em nota, informou que o clube tem conhecimento de alguns casos que ocorreram nos últimos anos e sempre entram em contato com a vítima. “Em seguida, busca acolher todos os acontecimentos, seja com a torcida LGBT tricolor ou torcedores individualizados. Nos colocamos à disposição e, a depender da situação, vamos além como fizemos já em denúncia ao conselho de Ética do clube, com penas de suspensão e exclusão do quadro de sócios, caso de trate de um sócio (a). Estamos sempre à disposição”, disse o clube, em nota.

Segundo o diretor social e ações comunitárias do Vitória, Mário Bello, o clube não costuma receber relatos de casos de violência contra torcedores LGBTQIAPN+ por falta de registros oficiais dos casos. De acordo com o diretor, foi somente a partir da aproximação com Roberto Júnior que a diretoria se tornou mais consciente da problemática.

“Os relatos costumam não chegar e eu comento com Roberto justamente sobre isso. Quando acontecer, o torcedor tem que entrar em contato com o Vitória para relatar, porque a gente sempre procura solucionar. O que precisar do clube, vamos sempre lutar para que o direito de qualquer torcedor seja igual”, disse.

Mario Bello também afirmou que a torcida Orgulho Rubro Negro recebe assistência do clube e está envolvida na elaboração de futuros projetos do clube. Caso um episódio de violência aconteça dentro ou nos entornos do Barradão, o diretor instrui que o torcedor deve procurar os órgãos competentes para que haja registro e o Vitória possa agir.

“No Barradão, a gente tem câmeras de segurança, policiais e seguranças terceirizados. A partir do momento que isso acontece, a gente instrui que se chegue a um policial para fazer a denúncia. Quando é feito o Boletim de Ocorrência, todos esses relatos chegam ao clube e aí a gente consegue tomar as medidas cabíveis”.

O que diz a Justiça?
A advogada Janaine Costa, mulher lésbica e torcedora do Bahia fanática, observa que a mudança de alguns torcedores heterossexuais respeitando torcedores LGBTQIAPN+ nos estádios ainda está em passos lentos, mas é possível ver que, com a ajuda da tecnologia, a comunidade está sendo mais assistida. 

“Infelizmente a homofobia é um estigma enraizado na nossa sociedade e fazer parte da comunidade LGBTQIAPN+ se torna uma luta diária e estado de vigilância constante. Expor, criar ferramentas de propagação e oferecer apoio às vítimas é necessário para garantir tanto a integridade física, quanto a integridade psicológica dos torcedores que sofrem ataques homofóbicos dentro dos estádios”, diz.

Desde 2019, a homofobia é crime. A decisão do Supremo Tribunal Federal enquadra como crime de injúria racial, “partindo desse pressuposto, a autoridade policial é obrigada a auxiliar e conduzir a situação de modo a proteger a vítima”.

Caso algum torcedor se sinta ofendido com alguma situação envolvendo homofobia dentro do estádio é imprescindível que seja registrado o boletim de ocorrência em uma das delegacias civis da redondeza, ou de forma online através da delegacia virtual. 

Caso ocorra flagrante, é possível ligar para o 19 e, se não possível, há os canais de denúncia do “Disque 100” (Disque Direitos Humanos) que é o canal de denúncia da Prefeitura Municipal de Salvador.

“Além disso, em caso de agressão, a vítima não deve se lavar ou trocar de roupa. Essa medida é necessária caso seja preciso realizar exame de corpo de delito. É importante também saber que a agressão pode ser filmada, mas não é o ideal a publicação por meio das redes sociais. Infelizmente, em alguns casos, o agressor pode se tornar vítima e abrir o processo de calúnia contra aquele que publica. A maioria dos estádios possuem câmeras espalhadas nas áreas comuns de acesso, então é dever da administração colaborar com a polícia e com a vítima na identificação do agressor.O importante é: sempre denuncie. Por mais que não chegue ao agressor, devemos denunciar porque se cria estatística e, desse modo, contribui na criação de políticas públicas e programas de combate à homofobia”, finaliza a advogada.

O Me Salte/Correio procurou a Polícia Militar  mas as duas instituições não se posicionaram até o fechamento desta reportagem. 

Medo gera subnotificação de denúncias, acredita Ministério Público da Bahia

A Promotora de Justiça Márcia Teixeira, que atua na promotoria dos Direitos Humanos, de Defesa dos às Pessoas LGBTQIAP+ e Combate à LGBTFobia, do Ministério Público da Bahia, explica que desde que a promotoria foi instalada, ainda em 2021, apenas um único caso foi investigado ligado ao futebol.  

O Ministério Público reforça que precisa de provas, sejam de torcedores ou jogadores vítimas de homofobias. Entre essas provas, pode ser uma gravação, filmagem, fotos que foram para a internet, um print parecendo a URL, pois ajuda na identificação do crime. A promotora lamenta que a população LGBTQIA+ ainda tem medo de procurar seus direitos perante à Justiça e reforça os canais de denúncias. 

“Seja em Salvador seja em outra cidade da Bahia, procure um promotor de Justiça da área criminal ou de Direitos Humanos que atua em questões lgbtfóbicas, mostra a situação que tem a prova e nós podemos requisitar, por meio de inquérito policial, ou nós mesmos podemos investigar através de um procedimento investigatório criminal. É possível fazer na delegacia ou procurar um promotor de Justiça. É importante que as pessoas entreguem as provas. Geralmente as pessoas procuram as delegacias mais próximas e os delegados alegam que não foi homofobia, então, com provas, o Ministério já tem como ajudar” 

A promotora reforça que há formas e canais gratuitos e seguros para acolher os torcedores. “A resistência ainda é grande para procurar a delegacia, pela demora, pelas piadinhas, mas o Ministério Público está aqui justamente para ajudar nessa situação. Nós requisitamos abertura de inquérito policial no momento em que a pessoa apresenta a promotoria com as provas. Pode procurar pelo e-mail, pejustica.lgbt@mpba.mp.br, pelo 127, tem o Fale Conosco. Enfim, temos vários canais para ajudar”.

Brasil lidera casos de crimes de ódio
Segundo o Grupo Gay da Bahia (GGB), o Brasil continua como o país que mais comete homicídios e suicídios de LGBTQIAPN+. Em 2023, foram 257 mortes documentadas, ou seja, uma morte a cada 34 horas. Por não existir estatísticas governamentais para colher informações sobre crime de ódio contra as pessoas da comunidade, a Ong realiza o filtro independente. 

Em comparação com 2017, que foram 445 mortes, ainda sim, é um número alto de pessoas LGBTQIA+ que morrem anualmente por puro preconceito. Até 30 de abril de 2024, foram 61 pessoas mortas, sendo a população de travestis e mulheres trans com o maior número de vítimas, 40, segundo o Observatório Mortes Violentas LGBTI Brasil, organização independente. Não há dados específicos sobre agressões com o recorte ligado aos esportes.

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