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Dos cantos à camisa: como torcidas e clubes buscam construir um ambiente seguro para pessoas LGBTQIAPN+ nos estádios

Por Alan Pinheiro, do Correio 24horas

“Foi um ato de coragem extrema, algo precisava ser feito, porque queria ser eu mesmo no estádio e não queria abandonar o lugar que me sinto tão bem”. A frase, dita pelo criador de uma das torcidas LGBTQIAPN+ do Vitória, a Orgulho Rubro Negro, representa o objetivo da diversidade e inclusão dentro de estádios como o Barradão ou a Fonte Nova. Nos últimos anos, além das torcidas, os próprios clubes têm se engajado na construção de um espaço mais seguro.

Wendel de Queiroz tinha apenas 16 anos, em 2019, quando decidiu fundar o Orgulho Rubro Negro. Inicialmente, Wendel criou as redes sociais da torcida e um grupo de WhatsApp para encontrar e organizar outras pessoas que defendiam a mesma pauta. “Quando a torcida foi fundada, a gente já sabia que as dificuldades, inicialmente, seriam maiores do que os avanços. Por isso, surgimos como movimento de rede social, já que não estávamos preparados para frequentar o estádio em grupo”, disse.

Membros da torcida Orgulho Rubro Negro com a camisa LGBT durante o jogo contra o Botafogo – Foto: Acervo Pessoal

A crescente da torcida organizada veio a partir de mais membros e mais apoio, principalmente de outras organizadas que colocam movimentos sociais em posições de destaque dentro de suas reivindicações. Para além das arquibancadas, o próprio clube entendeu a importância de defender a diversidade e começou a ter diálogos com o Orgulho Rubro Negro.

Roberto Júnior, atual presidente do Orgulho Rubro-negro, torcida LGBTQIAPN+ do Vitória, relatou que dirigentes do clube em gestões passadas se recusavam a ser associados e a ter contato com o grupo. Porém, o panorama na relação mudou quando profissionais da atual gestão do Leão começaram a contatar o grupo em 2023. Desde então, Roberto considera que o espaço dentro do clube aumentou, o que possibilitou a cooperação para a elaboração de ações afirmativas.

“Nessa atual gestão, fomos no clube com a antiga diretoria de mulheres, que abriu as portas do Barradão para a nossa torcida, além do contato com o diretor de comunidades do Esporte Clube Vitória e também com o diretor financeiro. Nós apresentamos uma série de ações que seriam importantes para combater a LGBTfobia, como anúncios no estádio para não ter cantos homofóbicos, anúncios de combate à LGBTfobia, a inclusão das cores da bandeira LGBT na bandeirinha de escanteio e conversamos sobre fazer um curso de letramento para os jogadores das divisões de base e funcionários do clube”’, afirma Roberto. Hoje, a torcida tem 32 associados.

O ano de 2019 tem importância para a luta pelo espaço seguro no futebol não apenas no Vitória. Em um mesmo momento, surgem duas outras organizações de torcedores que se mostraram importantes para a diversidade dentro do esporte: a LGBTricolor e a Canarinhos LGBTQ.

Inicialmente com o nome de Canarinhos Arco-Íris, a Canarinhos LGBTQ mudou de nome em junho de 2021, depois da criação de diversas torcidas e movimentos formados por torcedores e torcedoras LGBTQIAPN+. Com o objetivo de congregar esses coletivos, combater a LGBTfobia com ações, campanhas, iniciativas e sugestões de inclusão e diversidade. Hoje, o grupo tem diálogos diretos com setores públicos, com a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) e, dentro do contexto da Bahia, com a Federação Baiana de Futebol (FBF).

Em um primeiro momento, as movimentações e diálogos envolveram a Marias de Minas, a Palmeiras Livre e LGBTricolor, do Esporte Clube Bahia. Apesar de serem constantemente referidos como uma torcida organizada, o fundador do grupo e da Canarinhos, Onã Rudá, diz que essa associação de torcedores do tricolor baiano se define como uma “torcida movimento”, já que o princípio da torcida é movimentar, debater e difundir as pautas de diversidade dentro do próprio clube.

Onã Rudá – Foto: Divulgação

Chegando à marca de 600 pessoas associadas à LGBTricolor, Onã conta que a criação da torcida foi motivada diretamente pelas iniciativas do Bahia, que ganharam mais destaque a partir de 2018, quando foi criado o Núcleo de Ações Afirmativas dentro do clube. Em setembro do mesmo ano, o clube baiano ganhou o prêmio “Honra ao Mérito da Diversidade Cultural” pelo Grupo Gay da Bahia (GGB). Instituído em 2009, a premiação é direcionada a personalidades, órgãos públicos e entidades que se destacaram com contribuições à cidadania e diversidade cultural LGBT.

“A ideia surgiu depois que o Bahia começou a fazer uma série de ações afirmativas. Nesse caso, desde quando surgiu a primeira ação da camisa no impedimento, na coleção de clube do povo, eu tive a ideia de criar, mas aconteceu mesmo no dia que o Bahia lançou a campanha “Levante a Bandeira”, depois disso tudo fez sentido. Naquele mesmo dia, eu criei o movimento, criei o grupo, e comecei a juntar pessoas. A partir disso foram uma série de articulações, de conversas e de busca por parceiros e aliados “, contou o fundador do grupo, que vai lançar um livro sobre a trajetória da comunidade LGBTQIAP+ no Bahia.

Bahia lançou manifesto em 2021 Foto: Reprodução

Acolhimento
O baiano Ícaro Santos virou torcedor depois de conhecer as ações que estavam sendo realizadas pelos clubes e pelos próprios torcedores. Ele, que ainda não decidiu se vai torcer para Bahia ou Vitória, confessa que não sentia interesse pelo futebol, por considerar um esporte de “hétero”. No entanto, isso mudou após um amigo o mostrar o que estava sendo feito para quebrar o estigma e promover a diversidade.

“Além de falta de interesse, tinha medo também. Sempre me senti deslocado por não gostar de algo que uma grande parte de meus amigos curte, mas minha justificativa sempre foi de que era um espaço hostil para mim. Só começou a mudar mesmo depois que comecei a me informar, mas antes o interesse era zero”, explicou.

Segundo a psicóloga esportiva Janaina Ramos, o ambiente do futebol é marcado por características da masculinidade. A torcida, como um reflexo dessa imagem, também é marcada por um estigma de “homens primatas”, como definiu a profissional, onde ocorrem gritos de xingamentos homofóbicos e a verbalização de características femininas ou feminilizafas como forma de diminuir o jogador e descarregar ódio.

Para ela, as ofensas criam um ambiente hostil que afastam torcedores LGBTQIAPN+. Medidas como psicoeducação e palestras são exemplos de como os clubes podem desconstruir essa visão heteronormativa.

Para ela, as ofensas criam um ambiente hostil que afastam torcedores LGBTQIAPN+

“Como clube de futebol, deve-se ter essa responsabilidade ética com a comunidade, tanto com normas mais duras para torcida, como para desconstruir essa visão heteronormativa dos jogadores. Se um jogador for gay, mudará em que sua competência profissional? Nada. Mas para internalizar isso no coletivo é necessário a criação de um ambiente que respeite a individualidade de cada um”, explicou.

Vestidos com orgulho

A camisa de um time de futebol é o acessório mais importante dentro da representação do que é um torcedor. Dentro do “pacote”, muitas características são dispensáveis, como saber o nome e o sobrenome de todos os jogadores do elenco ou até ter gravado na mente as letras de cada música criada pelas torcidas organizadas. No entanto, a paixão pelo clube e a camisa da instituição são essenciais, já que possibilitam que o torcedor se torne parte de um todo.

Em um ambiente que espelha a realidade, sentir-se torcedor nada mais é que uma busca pela inclusão. Por esse motivo, tanto a LGBTricolor quanto a Orgulho Rubro Negro tiveram a iniciativa de unir o amor pelos times baianos à busca pela diversidade, incluindo as cores das bandeiras LGBTQIAPN+ nas camisas.

“A camisa foi apresentada para a gente pelo Núcleo de Ações Afirmativas (NAA) em 2019, mas pouco tempo depois começou a pandemia. Só vamos conseguir vender a camisa da LGBTricolor, de fato, após esse período. E essa camisa tem a autorização do clube para que a gente use, sendo o primeiro clube da América Latina a ter isso de forma oficial”, diz Onã Rudá.

De acordo com Onã, a camisa, que é vendida nas lojas oficiais do Bahia, tem uma importância tanto objetiva quanto subjetiva, porque posiciona o clube de uma forma contundente, mas também provoca os torcedores de futebol ao debate sobre o assunto.

No lado rubro negro, Roberto Júnior disse que havia uma primeira camisa do grupo que não continha as cores do Vitória, o que foi um motivo de preocupação para os membros do Orgulho Rubro Negro. “A gente queria que tivesse mais presente [as cores do clube e a bandeira LGBT]. Buscamos um primeiro formato de camisa, que a gente não achou tão interessante, e depois fomos com outro designer. Através de um próprio membro da torcida, fizemos o nosso rebranding, uma nova logo e a nossa versão da camisa. Somos apaixonados pela nossa camisa”.

Roberto Júnior – Foto: Divulgação

Para o atual presidente da torcida LGBTQIAPN+, os projetos de camisas representativas são importantes por trazerem mais identidade para a figura do clube. A partir de uma iniciativa de confecção da camisa, mais torcedores podem frequentar os espaços esportivos reforçando uma importante parte de suas identidades. “Nós vamos no Barradão com ela, fazemos nossa festa vestidos e isso é muito, muito especial para a gente”, completou.

Participação de Bahia e Vitória

“Honra ao Mérito da Diversidade Cultural”. Esse foi o prêmio recebido pelo Bahia em 2018 pelo Grupo Gay da Bahia (GGB). A premiação ao Esquadrão de Aço se deveu à campanha lançada pelo clube em 17 de maio daquele ano, Dia Internacional de Combate à Homofobia, Bifobia e Transfobia. Na ocasião, o tricolor se posicionou diante do tema, relembrando que o futebol deve ser um espaço para todos.

“O futebol historicamente se tornou um local de reprodução e exercício de crueldades e preconceitos, muitas vezes naturalizados pela sociedade. Racismo, machismo e homofobia, dentre outras formas de opressão, são facilmente presenciadas no ambiente do futebol, seja nos estádios, seja ao assistir televisão, seja nas redes sociais, nas rodas de conversa ou em qualquer lugar. Muitos alegam ser brincadeira, outros dizem que é normal. Alguns afirmam que “o mundo está ficando chato”. Mas é preciso tocar na ferida. É necessário contestar e evoluir. O futebol é porta de entrada para transformações de muitas pessoas. O Bahia é uma nação como outra qualquer, plural e diversa “, diz o posicionamento da campanha.

Em 2019, o Bahia criou a coleção “Bahia Clube Do Povo”, com camisas pra abraçar a pluralidade da torcida, além de lançar a campanha “Levanta a bandeira”, onde reforçou a posição do clube contra a LGBTfobia e trocar as bandeirinhas de escanteio para a bandeira LGBTQIAPN+. O Bahia também passou a adotar o nome social em todos os procedimentos administrativos do clube.

No lado do Vitória, o contato com a Orgulho Rubro Negro veio somente em 2023, mas mesmo antes da interação com a torcida organizada, o clube já se posicionava em datas afirmativas, além de exibir mensagens no telão, vocalizadas pelo locutor do Barradão, contra cânticos homofóbicos.

O criador do Orgulho Rubro Negro, Wendel de Queiroz, revelou que o Vitória disponibiliza um lote de ingressos promocionais em nome da torcida organizada. Segundo ele, essa ação possibilita o incentivo de pessoas que não se sentem bem em ir ao estádio por conta da sua orientação sexual ou do seu gênero.

Wendel de Queiroz, fundador do Orgulho Rubro Negro – Foto: Divulgação

“O clube entende o quanto a pauta é necessária e sabe o quanto é difícil uma pessoa LGBT se sentir seguro e bem no estádio, essa ação dos ingressos é extremamente importante. O Vitória se tornou aquele pai que tanto pedimos apoio, independentemente da sexualidade ou do gênero”.

“A gente se sensibiliza, sempre de portas abertas. O Orgulho Rubro Negro foi apresentado a projetos que estão sendo formulados. Sempre que possível, quando nos acionam, a gente tenta acolher essa torcida, que sofre retaliações”, explicou o diretor social e ações comunitárias do Vitória, Mário Bello.

Na última sexta-feira (17), dia Internacional contra a Homofobia, Transfobia e Bifobia, tanto Bahia quanto Vitória se posicionaram. Enquanto o time rubro negro reforçou o compromisso do combate, destacando que “somos um clube de todos e para todos”, o Bahia publicou um vídeo intitulado como “contratempo”.

Na produção, o time apresenta sete pessoas trans, com seus nomes identificados e o tempo que resta para completarem 35 anos. No final do vídeo, é informado que a maioria das vítimas de transfobia morrem antes dessa idade no Brasil.

A Polícia Militar da Bahia, por meio do Batalhão Especializado de Policiamento em Eventos (Bepe), atua nas praças desportivas da capital baiana para oferecer mais segurança aos torcedores das agremiações. Cada partida conta com um planejamento que envolve unidades convencionais e especializadas da PM. A corporação reitera a importância do acionamento de uma patrulha em qualquer circunstância que fuja à normalidade.

O Correio procurou a Federação Bahiana de Futebol para falar sobre o assunto mas até o fechamento dessa reportagem não houve resposta.

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