As últimas palavras que ouvi do meu pai ecoam até hoje nos meus ouvidos: “Você tem uma orientação de vida diferente da maioria das pessoas mas saiba que eu estarei do seu lado em qualquer hora esteja eu onde eu estiver. Ser o que você é difícil, mas é para quem é forte. Tenho orgulho do homem que você é. Te amo meu filho”.

Não entendi (ou na hora não quis entender) o que ele queria com aquela conversa. Mal sabia eu que essas seriam as últimas palavras que ouviria da sua voz em vida. Minutos depois de me dizer isso na porta de casa (segurando o portão com uma mão e uma pizza com a outra) ele teve um infarto fulminante. Morreu nos meus braços e partiu para um plano espiritual.

Ele não era desses tipos de declarações. Matuto, com pouco estudo, fazia a linha de poucas palavras. Eu nunca havia contado para ele que era gay. Tinha medo de decepcioná-lo, de fazê-lo sofrer ou mesmo de perder o seu amor. Ele se antecipou e usando seus enigmas – foi assim a vida inteira – me deu o salvo-conduto para eu ser gay e ser feliz mesmo sem ele ao meu lado fisicamente. Depois disso, nos sonhos e em pensamentos sempre corrobora com essa posição e sempre me dá o norte nas horas de angústias.

Meu pai viveu no interior e trabalhou por muitos lugares na vida. Isso lhe deu uma mente aberta, mas como filho eu tinha medo de ser diferente. E muitas vezes foi. Ele sempre brigava para eu falar grosso e/ou andar sem rebolar. Risos! Não deu certo. Um dia eu disse: “Vou andar rebolando a vida toda e pronto. Não tem quem dê jeito nisso”. Ele apenas sorriu e se calou.

Depois desse dia ele sempre deu umas indiretas sobre minha sexualidade, mas nunca tivemos uma conversa franca sobre o assunto. Não precisou e não me faz falta. Ele sempre se mostrava apoiador da causa – bem do jeitão bronco dele.

Lembro quando a novela Torre de Babel estava no ar e existia um casal lésbico na trama. As duas foram ‘explodidas’ junto com o shopping da novela por conta da rejeição do público. Ele odiou isso e, apesar da pouca idade, lembro da discussão que ele teve com um familiar (o símbolo do machismo e LGBTfobia até hoje): “As duas se gostavam e pronto. Quem ama tem que está junto”, bradou ele enquanto amolava faca para tratar peixe.

Sempre fui uma criança viada e que gostava de se emperiquitar todo. Minha babá, Rosa, me montava todo santo dia apenas para passear na praça. Como todo (ou quase todo) menino gay sempre pegava os sapatos altos de mainha para dar close dentro de casa escondido. Um dia eu estava sozinho no quarto andando lépida e faceira com uns tamacos quando ele voltou de viagem e abriu a porta. Sabe gelo na alma? Foi a sensação! O que ele disse: ‘Prego (era o apelido que ele me dava) largue isso aí que os vizinhos vão acordar’.

Olha aí meu close de criança bem viada com painho (João Demóstenes) !

Olha aí meu close de criança bem viada com painho (João Demóstenes) !

Dias depois ele me matriculou numa escolhinha de futebol. Virei o craque do time (creia!) e promessa nas categorias de base. Até aprovado em seletiva para um time grande da capital eu fui. (Pense aí o Me Salte ia ser na verdade um blog de futebol, rs)  Mas, graças ao time do Brasil na Copa de 98 consegui me livrar desta penitência (se bem que poderia ser milionária hoje, rs) . Usei a desculpa que estava decepcionado com a derrota do Brasil e abandonei os campos. Ele acreditou (ou não).

Apesar do pouco estudo ele era muito curioso e dominava brilhantemente as normas cultas da língua portuguesa. Eu fico, às vezes, imaginando que ele iria pirar o cabeção com o pajubá! Certamente se ele estivesse vivo já teríamos conversado e ele estaria ao meu lado indo me acompanhar nas pautas. Ele amava quando Silvio Santos levava para o programa Silvio Santos os shows de transformistas. Ou seja, bem capaz de gostar dos shows das nossas drags.

Tomei a decisão de escrever esse relato hoje – dez anos depois de sua morte – pois vejo que muitas pessoas padecem com o fatídico momento de contar para a família sobre sua orientação sexual. Meu pai era uma muralha. Parecia intransponível. Honestamente não sinto falta de ter chegado até ele e conversado abertamente sobre a minha sexualidade. O tempo passa e a vida segue.

Mas isso faz falta para muita gente. Por isso, manas, conversem com seus pais. Abram o coração. Obviamente, escolha o momento certo para isso (talvez, hoje (13), dia dos pais não seja necessariamente essa hora). Afinal, a intolerância é muito forte em muitos lares. Muitas manas são expulsas de casa, espancadas e torturadas pelos seus genitores por conta da sua sexualidade.

Se você é pai e sabe que seu filho é LGBTQ+ fale com ele logo. Não espere a vida acabar.  Tenham a consciência que  a vida – como dizia Oscar Niemeyer – é um sopro. E, se houver amor, sempre haverá acolhimento. Se não tiver é porque não é amor.

Te amo, painho! E sei que tu – esteja onde estiver – está gostando de me ver lacrar pela vida 🙂

13 de agosto de 2017

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