Por Bruno Brasil, especial para o Me Salte
A programação do Carnaval de Salvador 2018 ainda não foi oficialmente lançada, mas basta um olhar rápido para saber que a festa desse ano promete ser a maior edição voltada para o público LGBT já vista. Apenas na quinta-feira de Carnaval, Daniela Mercury, Os Mascarados, Claudia Leitte e Alinne Rosa são algumas da atrações que vão abrir o circuito Barra-Ondina.
Mas nem sempre foi assim… No final dos anos 90 (a era de ouro da Axé Music), o único bloco LGBT no Carnaval de Salvador era “Os Mascarados”, criado em 1999 e puxado até então por Margareth Menezes, que reinava absoluta entre os gays logo na quinta-feira. O sucesso tem um motivo óbvio: com a exigência da fantasia como abadá, o público se aproveitava do disfarce e das máscaras para se esconderem da homofobia.
O sucesso de Maga frente ao público era tão grande que os ensaios dos Mascarados ficavam lotados durante todo o verão, comparado ao que são hoje os ensaios do Cortejo Afro, no Pelourinho.
Além do próprio desfile, a concentração dos Mascarados se tornou um point importante no Carnaval LGBT. A saída ocorria na Associação Atlética da Bahia (onde rolavam os ensaios). O local ficava perto do Carnaval, porém nas ruas de dentro do circuito e permitia que o público estivesse mais “escondido”, fora dos holofotes e de um desfile predominantemente heterossexual. Era lá que os foliões faziam a maquiagem, organizavam desfiles e escolhiam a melhor fantasia da noite. “A concentração tem sido tão boa que temos até dificuldade em sair”, brincou Margareth em uma entrevista na época.
A grande mudança de cenário para o público gay (e derrocada de Margareth) no Carnaval ocorre a partir 2005, quando Maga afirma em uma entrevista de rádio que “tem que acabar com essa história que nos meus shows só tem homossexual. Os Mascarados é do povo”. A polêmica declaração (até hoje sentida/rebatida e questionada) de Margareth rendeu na época uma moção de repúdio do Grupo Gay da Bahia e, anos depois,o fim da parceria dela com o bloco. Até hoje, os foliões dos Mascarados sentem a falta de uma boa puxadora de trio. Em 2018, o bloco será comandado por Sandra de Sá e Liniker, que fará sua estreia no Carnaval, mesmo sem ter identidade com a festa.
Além dos Mascarados (que a partir de 2001 passou a sair na quinta e no sábado, voltando a desfilar apenas no primeiro dia de Carnaval em 2007) a única opção até então para a diversidade sexual no Carnaval era um gueto. Ou melhor, um beco. O Beco da Off (principal boate LGBT da época) foi durante muitos anos o reduto de quem queria – e podia – paquerar na festa. Estar no Beco, naquela época, representava um ato de “se assumir” publicamente.
A cor dessa cidade é gay
Na contramão, Daniela Mercury começa a fazer discursos cada vez mais empoderados. Questionei se ela sabia quando o Crocodilo tinha se tornado um bloco LGBT (o Crocodilo existe desde 1985 e já teve cantores como Ricardo Chaves e a banda Asa de Águia. Em 2006, o bloco chegou a ser dividido entre Daniela e a cantora Gilmelândia). Ela refuta o rótulo e diz: “não sei exatamente o ano, mas lembro que um produtor veio todo preocupado me falar que no meu dia o bloco estava cheio de gays. ‘Que ótimo!’, respondi”.
Pouco a pouco, o público LGBT começa a ocupar de forma tímida as ruas do fora do Beco e também do armário. Mas a homofobia ainda dominava a principal via do Carnaval.
“De cima do trio comecei a perceber umas brigas. Eram homofóbicos querendo bater nos meus foliões. A primeira vez que eu vi essa cena, a gente estava chegando ali no Beco de Ondina, eu percebi que já havia algumas pessoas fora da corda esperando o Crocodilo, parei o trio e chamei a Polícia Militar. ‘Se vocês brigarem com alguém aqui vão ser presos. Eu não vou tolerar isso!’, relembra Daniela.
Segurança. Era o que faltava.
Um dos discursos mais explícitos – e potentes – de Daniela Mercury ocorre durante o Carnaval de 2011, em frente às emissoras de televisão. “Quando eu comecei, os blocos não botavam pretos. Agora, a gente é que é preto aqui no Crocóh. É gay. E é isso mesmo! A gente é viado, a gente é lésbica. A gente é o que a gente quiser. A gente beija o céu, a terra e o mundo”, bradou a cantora em cima do trio. Ela viria a assumir o romance – e casamento – com a jornalista Malu Verçosa dois anos depois.
Ao estampar jornais e revistas do mundo inteiro pelo casamento e defesa aberta da causa LGBT, Daniela Mercury e o Crocodilo ganham um novo fôlego e se tornam o grande símbolo LGBT do Carnaval, trazendo consigo uma renovação de público para o bloco. Não é à tôa que as últimas divulgações de Daniela ocorreram, principalmente, em São Paulo. No ano passado, Daniela apresentou na cidade mais de quatro formatos diferentes de shows, virou o símbolo da Parada Gay de SP e, atualmente, luta pela oficialização de um circuito no Carnaval da capital paulista.
Por volta de 2010, a crise da Axé Music atinge em cheio o Carnaval e, enquanto isso, os empresários seguem ignorando completamente o público gay, que ganha cada vez mais importância.
O primeiro deles foi o Cheiro de Amor.
Ironicamente, o grupo Cheiro deixou escapar toda uma oportunidade de conquistar esse público pelo ralo. Ainda com a cantora Alinne Rosa nos vocais, a produção do bloco contratou (por causa da mão de obra barata e relacionamentos nas redes sociais) os promoters das boates gays de Salvador para venderem os abadás no velho esquema 10/1 (a cada dez abadás vendidos, um era dado de cortesia para o vendedor). Foi assim que os promoters foram comercializando os abadás para suas “listas” vips e, com isso, um público LGBT de classe média começa a ocupar o Cheiro, tendo Alinne Rosa como uma das primeiras ‘divas’ do Carnaval.
Além disso, o Cheiro tinha outro trunfo na mão: o bloco Yes, puxado apenas por DJ’s internacionais e que atraia outro nicho gay de mercado: os fãs de música eletrônica. (Outra ironia do destino: no ano de lançamento do bloco, o Yes praticamente não lucrou já que a grande parte dos abadás foram dados de cortesia para mulheres, maioria de agências de modelos, na tentativa se consolidar entre o público heterossexual).
Recentemente questionei a um dos empresários do Cheiro porque eles nunca apostaram nesse segmento. A reposta foi a mais absurda possível. “A gente não quis associar nossa marca a esse público. Isso afasta as famílias. Se continuar dessa forma, o Carnaval de Salvador vai se tornar uma Parada Gay”. Em 2018, o Cheiro e o Yes não tem previsão de colocar nenhum dos dois blocos na rua.
Apesar da tentativa da maioria das cantoras da Axé Music de colarem no sucesso do sertanejo, que passa a dominar o país a partir de 2012, é o público LGBT que tem sustentado os blocos em Salvador.
Os números da Central do Carnaval, empresa do grupo Camaleão e que concentrava as vendas de bloco e camarotes do Carnaval, dá uma noção dessa mudança. Em 2015, no auge da crise do Axé, a Central vendia 25 blocos (entre eles o Crocodilo) e 11 camarotes. Em 2018, três anos depois, uma rápida busca no site da Central mostra apenas 16 blocos e 8 camarotes.
Do outro lado, o grupo San Sebastian tem motivos de sobra para comemorar. Neste ano, os empresários José Augusto e André Gagliano criaram o San Folia, primeira plataforma a comercializar blocos assumidamente gays (Crocodilo, com Daniela Mercury; Blow Out e Largadinho com Claudia Leitte e o estreante O Vale, com Alinne Rosa). Faltando pouco menos de um mês para o Carnaval, o grupo já vendeu 70% dos 12 mil abadás. Desses, 80% foram para turistas de cidades como Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte e Brasília.
Os números começam a chamar atenção.
Ivetes, Cláudias e simpatizantes
O primeiro discurso público de Ivete Sangalo em defesa à comunidade LGBT ocorre em 2016, durante a coletiva de lançamento do DVD Ao Vivo em Trancoso. “O que o fato de alguém ser homossexual mudará na minha vida ou na sua? Não estamos falando de homossexual, estamos falando de um indivíduo. E não há nada que possa transformar minha opinião sobre isso. As pessoas não se prenderam no amor, se prenderam no ódio. Eu acho isso de uma ignorância, de um retrocesso humano...”, declarou Ivete, responsável pelos blocos Coruja e Cerveja&Cia.
(No início e até meados dos anos 80, o bloco Coruja era formado exclusivamente por homens, que paqueravam as mulheres do lado de fora da corda e, muitas vezes, as colocavam dentro do bloco para seguirem o resto do circuito. Hoje em dia, apesar da regra ter sido abolida, o bloco voltou a ser só de homens – só que não mais interessados nas mulheres do lado de fora da corda)
No ano seguinte, Ivete assumiu uma parceria com a boate San Sebastian e foi a protagonista do San Island, um evento LGBT que teve 100% de lotação dos hotéis e pousadas em Morro de São Paulo. Vestida com um maiô estampado com cores do arco-íris em lantejoulas, Ivete chegou a fazer um trocadilho com a música “E aí, chupa toda” por “E aí, chupa r***”. Demorou, mas aconteceu.
Assim como Ivete, Cláudia Leitte é outra cantora resolveu “se assumir” há pouco tempo. Em 2008, Claudia foi taxada de homofóbica após declarar: “Eu adoro os gays, mas prefiro que meu filho seja macho”. Quase dez ano depois, Claudia consegue se consolidar entre o público LGBT, principalmente entre os jovens (ou teens), e lançou no ano passado o bloco Blow Out, em parceria com a San Sebastian. Os blocos dela atualmente lideram as vendas através do San Folia.
No rastro de Daniela, Claudia Leitte também levará o bloco Largadinho para São Paulo no sábado pós-carnaval, com desfile na Av 23 de maio.
E não faltam casos como esse. O Bloco das Poderosas, Bloco da Preta e, mais recentemente, o Vale (fazendo alusão ao ‘vale dos homossexuais’) são exemplos de que o público LGBT vem consumindo o abadás que seguiam encalhados ano após ano.
E não é apenas os blocos que o público LGBT tem resgatado da crise. O Fortal tem crescido ano após ano, apesar do ritmo cada vez mais fracos das micaretas no país. Até o Expresso 2222, tradicional camarote criado para empresários e artistas, vai tentar neste ano uma fatia desse bolo. Sob o comando de Preta Gil, o Expresso terá uma festa separada (que vai acontecer no mesmo prédio) com Pablo Vittar e edições do Chá da Alice, Badauê e a boate The Week.
Apesar das cifras milionárias que esse público consome e gera de renda, Salvador continua a fazer vista grossa para este mercado. Não há hotéis preparados, falta uma delegacia especializada, as agências não planejam pacotes específicos, o material de divulgação da Prefeitura não dá informação de forma explícita sobre atrações LGBT’s, entre outros mil problemas. Dados fornecidos pelo Youtube mostram que Daniela Mercury e Margareth Menezes estão entre os 15 artistas brasileiros com mais “plays” no exterior em 2017. Porém, se esse mesmo público quiser vir ao Carnaval de Salvador, não vai encontrar um único site com informações em inglês. O preconceito consegue ser maior que a vontade de ganhar dinheiro.
Cheguei a questionar a um dos gestores públicos responsáveis pelo Carnaval qual seria o impacto da ausência de Ivete no Carnaval de 2018. De forma informal, respondeu: “a gente perde aí uns 400 viados”.
Guardada as devidas proporções, esse ano a cidade de Madrid, na Espanha, foi a sede da World Pride, a Parada Gay Mundial. De acordo com fontes oficiais, foram 1,4 milhão de pessoas no dia do evento (o que nem de longe chega ao público do Carnaval). O evento durou dez dias (nos quais só foi registrada UMA denúncia por LGBTIfobia) e toda a cidade se preparou para recepcionar o público e fazer girar a economia. Da padaria da esquina aos grandes shoppings, em qualquer lugar se encontrava uma bandeira da causa LGBT. Todos saíram ganhando.
Enquanto isso, em Salvador, todos os anos fala-se na crise do Carnaval. Muitos empresários afirmam que o público que lotava os blocos nos anos 90-2000 não se renovou. O que eles não enxergam é que existe um público que tem alto poder de consumo, viajam quatro vezes mais, gastam 30% a mais nas viagens, possuem dupla renda e sim… são gays, lésbicas, travestis, trans. O que esse público não tolera é um péssimo serviço recheado de preconceito.
Como disse um amigo que já acompanha o Carnaval há anos: “não queremos mais o beco e nem armário. Nosso lugar é na Avenida!”.
*Bruno Brasil é jornalista e escreveu essa crônica especialmente para o Me Salte