Por Thais Borges, especial para o Me Salte

“Não só a gente não agrediu como a gente salvou a vida dele”. É com essas palavras que a publicitária Érica Mendonza, 34 anos, define a situação que sua família tem vivido nos últimos meses. Em novembro, eles foram acusados pelo coordenador de Políticas e Promoção da Cidadania LGBT da prefeitura de Salvador, Vida Bruno, de agredi-lo no restaurante da família, o Cervantes, no Campo Grande.

Segundo Bruno, o ataque teria sido motivado por transfobia – ele é um homem trans. No entanto, a família nega as acusações. À polícia, eles apresentaram provas de outra versão: a de que o coordenador de políticas da prefeitura teve uma convulsão depois de ter comido um prato de mexilhões.

“Nossas vidas foram devassadas por causa de uma pessoa que decidiu acabar com a gente”, afirma a publicitária, filha dos donos do restaurante.

Através da assessoria, a Polícia Civil confirmou que não encontrou elementos suficientes para indiciar ninguém, de acordo com os laudos de lesões emitidos pelo Departamento de Polícia Técnica. Assim, o inquérito foi remetido ao Ministério Público do Estado (MP-BA). O órgão, contudo, não respondeu aos questionamentos da reportagem até a publicação.

Na semana passada, quase três meses após o episódio, o caso ganhou um novo capítulo. De acordo com a família e amigos de Vida Bruno, ele foi internado na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) do Hospital Teresa de Lisieux para tratar de um sangramento no crânio. O quadro seria, segundo os familiares, devido à suposta agressão sofrida em novembro.

“A gente foi linchado, chamado de transfóbicos, homofóbicos. Somos um restaurante que existe há 40 anos que nunca se envolveu em nenhum tipo de escândalo, de agressão. Isso não foi levado em conta em nenhum momento, nem as provas que a gente apresenta. Nada disso tem valor?”, questiona Érica.

Arquivamento
O CORREIO teve acesso ao relatório do inquérito policial, que foi concluído no dia 21 de janeiro. No documento, a delegada Rogéria Araújo, titular da 1ª Delegacia (Barris), sugere que a investigação seja arquivada.

“Em busca da verdade real, testemunhas foram ouvidas, não somente os funcionários do estabelecimento comercial como pessoas que se encontravam no local e fora dele. Da análise dos autos, percebe-se que não restaram evidenciadas as condutas típicas apontadas na peça exordial, ressaltando-se a investigação cuidadosa na busca da materialidade delitiva, a qual não foi encontrada, e por este motivo, conclui-se o presente sugerindo pelo arquivamento”, escreve a delegada.

À polícia, o casal de médicos que prestou os primeiros socorros ao coordenador de políticas da prefeitura escreveu um documento narrando as atitudes que tomaram. Depois dos primeiros procedimentos, eles afirmam que o quadro de Bruno melhorou.

“Em poucos minutos, o paciente apresentou melhora da respiração e da palidez, persistindo a desorientação e a agitação, sendo muito difícil, devido à sua força, mantê-lo deitado no interior do restaurante”, dizem.

Mesmo assim, continuam, Vida Bruno teria conseguido sair do local. Os médicos afirmam que, com ajuda de outras pessoas, conseguiram “contê-lo para impedir que se machucasse” enquanto aguardavam a ambulância chamada pela dona do restaurante.

Em entrevista ao CORREIO, na noite desta segunda-feira (15), ela contou sua versão do caso. Confira os principais trechos da conversa:


“O episódio aconteceu no dia 29 de novembro do ano passado. Na ocasião, Vida Bruno realmente passou mal no estabelecimento (Cervantes). Ele comeu um mexilhão e começou a convulsionar dentro do restaurante. Isso de fato aconteceu. Quando ele começou a convulsionar, ficou por mais ou menos uma hora se debatendo, tendo espasmos.

Nesse meio tempo, ele sangrou pelo nariz. Dois clientes que são médicos por acaso chegaram no restaurante porque tinham uma encomenda, inclusive de mexilhões, e deram os primeiros socorros. Minha mãe, que é dona do estabelecimento, já estava chamando o Samu (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência) para dar socorro.

Ele estava sozinho, desacompanhado. A gente não sabia quem era a família dele. Quando o Samu é chamado para um registro desse, o médico (que atende o chamado por telefone) pergunta da situação. Nesse momento, os médicos dos primeiros socorros falaram como ele estava, na linguagem de médicos. Ele estava ainda tendo convulsão no restaurante. Ele ficou muito tempo convulsionando. Deitaram ele de lado, colocaram no sofá.

Quando o Samu chegou, ele já tinha recobrado em parte a consciência, mas voltou completamente transtornado, como se tivesse fora de si. Era como se fosse uma crise esquizofrenia, um surto psicótico. Uma convulsão é um problema neurológico e, quando ele voltou, estava completamente agressivo, virando mesa, jogando prato no chão, empurrando as pessoas que estavam perto dele para dar suporte.

O Samu tentou dar o socorro e não conseguiu. Ele estava tão nervoso e descontrolado que o Samu não conseguiu colocar ele dentro da ambulância. Ele não foi levado para nenhum hospital e saiu perambulando pela rua sem sapato. Ele realmente deixou as coisas no restaurante porque saiu desorientado, entrando em outros estabelecimentos ali do Campo Grande.


As escoriações que ele teve foi porque, por muito tempo, ficou se debatendo em mesa. Não foram machucados de espancamento. Se ele tivesse sido espancado como diz que foi, deveria ter ido para UTI naquela época.

Ele voltou uma hora depois, mais ou menos, com policiais fortemente armados já com essa história, dizendo que tinha sido espancado, que tinha sofrido homofobia. A gente acha que ele criou um factóide, uma situação para capitalizar.

Por que ele não chamou a polícia lá mesmo? Como uma pessoa que diz que apanhou tanto, praticamente morreu, sai do local e ninguém acudiu, ninguém filmou a agressão? Foi meio-dia, num domingo, a rua estava cheia de gente, todas as pessoas foram nossas testemunhas. Os vizinhos do lado de fora ficaram revoltados porque viram que era muita injustiça.

Quando ele chegou na delegacia de flagrantes, disse que tinha sido espancado por seguranças. Disse que meu pai teria espancado ele com seguranças, do lado de fora. A gente nunca teve seguranças. Falou que meu pai inclusive teria arrancado a roupa dele, mostrando os seios quando descobriu que era um homem trans e que a gente teria exposto ele.

Ele conta com riqueza de detalhes e quando você olha a filmagem, que a gente pegou na mão de uma vizinha, a gente vê o Samu chegando. A gente só não vê pancadaria, a gente não vê nada que ele fala. A gente vê as pessoas desorientadas do restaurante, os funcionários com a mão na cabeça, minha mãe com telefone no ouvido chamando o Samu.

Os médicos que deram socorro podem ter salvado a vida dele. A gente acha que ele realmente passou mal e depois criou uma situação pra tirar vantagem. Ele convocou pessoas na internet para irem fazer manifestação lá. A gente foi linchado de homofóbico, transfóbico e a gente sabe que essa é uma pauta real, que as pessoas morrem disso e são espancadas diariamente.

Eu estava na estrada e fui ajudar meus pais. Cheguei quando eles já estavam na delegacia, mas até o meu nome entrou na história. A gente estava sendo massacrado por um mentiroso, por uma pessoa que vendeu a história dele como verdade e a gente não tem como se defender. Não tivemos espaço para mostrar as provas que a gente tinha.

Agora, três meses depois, vem dizer que está na UTI em decorrência de uma falsa acusação, com sequelas de uma agressão que nunca existiu.


Quem deu a queixa foi ele e a gente teve que provar que nada aconteceu. A gente conseguiu provar graças à câmera de uma vizinha. Depois disso, colocamos câmera lá dentro porque estamos traumatizados.

A gente salvou a vida dele. Ele comeu, passou mal e tinha pessoas lá para cuidar dele. Todo mundo tentando ajudar, botando a mão dentro da boca dele.

Tem um monte de gente que se decepcionou com o Cervantes sem saber. A gente teve muito prejuízo na imagem do restaurante. Inclusive, teve desdobramentos porque existe outro restaurante chamado Cervantes no Rio de Janeiro. Não tem nenhuma ligação gastronômica com a gente, mas a patente do nome é deles desde 1990.

Como o Cervantes de Salvador existe há 40 anos, tínhamos um acordo de cavalheiros. O Cervantes do Rio nunca se incomodou de usarmos o mesmo nome, porque entendia que não era do mesmo segmento. Depois desse escândalo, as pessoas foram fazer o linchamento virtual da gente e o Cervantes do Rio pediu para a gente mudar de nome. Ameaçaram nos processar por danos morais porque o escândalo com Vida Bruno, do qual a gente também é vítima, tinha atingido o Rio de Janeiro.


Ele disse que era alérgico a marisco. O restaurante não tem responsabilidade sobre alergia dos outros. É um restaurante de frutos do mar, então ele tinha que ter comunicado. Ele nunca tinha ido lá antes. Nesse dia, como ele passou mal, nem chegou a pagar o mexilhão.

A gente vai tomar providências na Justiça em relação a Bruno, porque ele fez uma calúnia. Ele vai virar réu porque ele não é vítima.

No início, a gente queria deixar isso passar. Só queria que isso acabasse, só queria voltar a ter paz. Só que agora a gente quer justiça.

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