Dos cantos à camisa: como torcidas e clubes buscam construir um ambiente seguro para pessoas LGBTQIAPN+ nos estádios
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Casos de cânticos homofóbicos não são notificados na Bahia, mas ainda existem nos estádios

Bahia e Vitória podem não receber punições do STJD, mas emitem comunicados contra cânticos

Por Brenda Vianna, do Correio 24 horas

A palavra torcedor vem de torcer, aquele que torce e contorce o seu corpo nas angústias ao assistir uma partida de futebol. Como parte de se sentir incluso ao clube, esses apaixonados começam a incentivar o time com os cânticos na arquibancada. O torcedor clama, grita, expressa todo o seu amor pelo time. Cada música cantada, é uma forma de se conectar com o clube que está em campo, mas e quando as músicas ultrapassam a linha do respeito e chega no nível de atingir a orientação sexual do outro?

Mesmo com músicas ainda sendo entoadas nas arquibancadas do Barradão e da Fonte Nova, o Supremo Tribunal de Justiça Desportiva foi claro à reportagem: não há denúncias registradas para comprovação.

As últimas denúncias envolvendo cânticos homofóbicos nos estádios brasileiros saiu do time do Ceará, em agosto de 2023, quando torcedores entoaram músicas preconceituosas contra o Vila Nova (GO), sendo multado em R$ 40 mil; Já em Alagoas, em setembro de 2023, na partida entre Náutico (PE) e Csa (AL), cada um foi multado por troca de ofensas homofóbicas entre os torcedores, sendo R$ 8 mil e R$ 5 mil, respectivamente.

Mas, se para a Justiça Desportiva, os cânticos homofóbicos proferidos têm de ser punidos com multas aos clubes, tem torcedores que acham que essa punição é descabida e até um absurdo completo.

“Eu discordo que as músicas que canto na Fonte são para ofender a comunidade LGBTQIA+. É um ambiente totalmente heterossexual, sabemos disso, mas é claro que quando cantamos, não é para ofender ninguém, pelo contrário, é para conseguir soltar o que está preso na garganta. Chega ser sem noção querer punir a torcida porque a gente se expressa dessa forma”,afirma Pedro Lins, de 27 anos, que é estudante de engenharia, frequentador da Fonte Nova e apaixonado pelo Bahia.

Assim como Pedro, pelas bandas de Canabrava com a torcida do Vitória, Caio Santos também acredita que não faz por mal ao gritar na arquibancada “a bagay dá o c*zinho”. Música essa, inclusive, que viralizou e furou a bolha do estado da Bahia, circulando pelo Brasil inteiro entre outros times através das redes sociais.

“Quando a gente grita que desde 97 a ‘bagay’ faz o que faz, na verdade, é provocação entre torcidas mesmo, sabe? Uma brincadeira tranquila que acontece há anos, mas não é para deixar homossexuais menosprezados”, completa o publicitário de 29 anos.

O esporte acaba virando uma parte da sociedade e, infelizmente, o cenário esportivo pode virar um grande alvo para o contexto homofóbico. Para o psicólogo, pós-graduando em psicologia do esporte e especialização em futebol Jorge Santana, os torcedores heterossexuais acreditam que tudo é permitido, já que é um ambiente de desabafo, mas acaba perdendo o limite do respeito.

Construído em meio a um espaço de virilidade, sobreposição e mostrar que a masculinidade tem força, os cânticos acabam sendo expressados de forma preconceituosa e tóxica, mesmo com os homens expressando comportamento “homossexual”.

“A gente percebe muito nitidamente o contraste. O preconceito emana a heterossexualidade, mas se pararmos para pensar, tem contextos em que os homens não são acostumados a dizer “eu te amo” dentro do âmbito familiar ou com amigos, mas há a liberação da expressão da afetividade para com os jogadores, declamando todo o seu amor para aquele que não é do convívio diário”.

Lei e desafios
O artigo 243-G do Código Brasileiro de Justiça Desportiva enquadra a prática de ato discriminatório, desdenhoso ou ultrajante, relacionado a preconceito em razão de origem étnica, raça, sexo, cor, idade, condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência.

Mas, para conseguir reverter essa prática descritiminatória dentro dos estádios, ainda é um trabalho de muita paciência para ensinar a sociedade esportiva, segundo Roberto Junior, presidente do Orgulho Rubro-negro, torcida LGBTQIA+ do Vitória. Ele explica que, infelizmente, a maior parte da torcida ainda canta de forma preconceituosa a canção da ‘bagay’, mas que quando chega determinadas partes da música, eles mudam os traços homofóbicos.

“As pessoas que estão ao redor ficam se questionando e a gente vai e explica, porque é homofóbico. Nós fazemos esse processo de ‘trabalho de formiguinha’ dentro do estádio. Isso tem sido bastante desafiador também, e é isso né, até hoje não tivemos nenhum tipo de repreensão por parte das torcidas organizadas”, explica.

Mas quem cria as músicas? Segundo Onã Rudá, presidente da LGBT Tricolor e fundador do Canarinhos LGBT, as torcidas nas arquibancadas vão criando as canções e puxando pelo lado homofóbico, ou seja, nem sempre é criada pelas organizadas. Porém, boa parte dos cânticos que existem atualmente nas torcidas organizadas dos times brasileiros, quase 90% tem conotação preconceituosa referente à comunidade.

O episódio recente envolvendo o jogo do Bahia e Grêmio, a torcida gritava aos pulmões “Arerê, gaúcho dá o c* e fala tchê”. O cântico, no entanto, acabou circulando não só no ambiente futebolístico, mas também fora dele para perpetuar a provocação.

E como fazer para que o clube seja punido pelos cânticos entoados pela torcida? O Canarinhos LGBT encaminha para o STJD a canção identificada pelo árbitro ou até nas redes sociais, cria a denúncia e, caso seja um episódio estadual, envia também para o TJD. No caso da Bahia, é o Tribunal Desportivo Bahia, que julga os episódios estaduais.

Mas, ainda é um trabalho bastante difícil pelo Brasil inteiro, mesmo que não haja notificações para o Bahia e Vitória, como foi citado no início da reportagem. Onã explica que, mesmo com notificações enviadas para o tribunal, ainda há complicações.

“É nessa hora que acontecem os imbróglios. Muitas NIs [notificação de infração] que a Canarinhos envia, são acatadas pelos procuradores, outras não são. O procurador entende que a Canarinhos, por não ser uma entidade constituída da estrutura do futebol tradicional, não é um clube de futebol, não é uma federação, não é uma justiça desportiva, entendeu? Ela não tem autonomia, vamos dizer assim, ou legitimidade pra poder apresentar N.I.”, explica.

Para reverter essa situação, a Canarinhos tem feito listas de sugestões de ações e iniciativas que podem ser adotadas pelos clubes e federações para que haja a redução do cântico, manifestação e exposição homofóbica dentro dos estádios. A Canarinhos tem recebido respostas dos clubes para conversas e ajudas para resultados que sejam positivos. Com essas iniciativas, há a possibilidade de melhorar a forma como o STJD tem trabalho em prol de conscientizar os clubes.

Desafios pela história do futebol
Doutor em Educação Física, que estuda também mestrado em racismo e futebol, Bruno Abrahao, detalha que esses cânticos e verbalizações que os torcedores passaram a manifestar nas arquibancadas, vem desde o príncipio do futebol e acaba demonizando a questão homoafetiva, mas a situação tem mudado com a participação da Justiça Desportiva.

“Esses cânticos, essas verbalizações que os torcedores passaram a manifestar nas arquibancadas, historicamente foi desconsiderado, já que nos últimos anos, com o processo de modernização, passou a ver a necessidade de civilizar esse comportamento desse torcedor que está nas arquibancadas e que já não pode dizer tanta coisa que os estádios de futebol consentiram, mas que passaram a ser regulados por uma maior manipulação desse comportamento do ato torcer nos estádios de futebol”, diz.

Mas, ainda que exista os cânticos homofóbicos nas arquibancadas, a Promotora de Justiça Márcia Teixeira, que atua na promotoria dos Direitos Humanos, de Defesa dos às Pessoas LGBTQIAP+ e Combate à LGBTFobia, do Ministério Público da Bahia, explicou à reportagem que não há denúncias no MP sobre casos envolvendo as músicas no Bahia e Vitória.

Segundo ela, até chegam algumas informações sobre o que acontece nas arquibancadas, mas não há denúncias formais e oficiais. Márcia, no entanto, reforçou que a partir da reportagem do jornal, vai buscar informações para começar um ofício futuro, já que essas violências LGBTfóbicas causam danos.

“A violência lgbtfóbica pode não causar dano físico imediato, mas causa medo, causa problemas psicológicos e cabe uma intervenção. Se não acontecer de forma consciente, tem que ser feito intervenção na área criminal, na área administrativa, na área de esporte, temos promotores específicos que trabalham com essa questão das torcidas e a violência em campo”, avalia a promotora.

Segundo Mário Bello, Diretor social e ações comunitárias do Esporte Clube Vitória, é importante salientar que são torcedores homens heterossexuais que sabem que estão entoando cânticos de cunho homofóbicos. Mesmo em um ambiente que, em sua maioria, é formado pelo gênero masculino cis hetero, não exime a torcida de evitar e até acabar com as expressões, cânticos que são preconceituosos.

“São adultos que estão cantando ali. A instituição botou uma nota de repúdio em relação aos cantos homofóbicos, deixando bem claro que existe o estatuto e o próprio clube pode ser penalizado. Essa foi nossa forma de expor isso e reafirmar que somos contra”.

O Esporte Clube Bahia também se posicionou referente aos cânticos e, por meio de nota, reforçou que o clube segue atento e disposto a trabalhar para que esses casos e semelhantes não aconteçam mais. “Recentemente, no jogo contra o Grêmio, um torcedor, sócio do clube, foi identificado. Foi aberto um processo administrativo interno contra ele para apuração sobre os vídeos circulados em redes sociais”.

Procurada, a Arena Fonte Nova não se pronunciou sobre as medidas tomadas no estádio. O espaço segue aberto.

A Polícia Civil foi procurada, que se limitou a informar que não há dados sobre o assunto. A Polícia Militar também não tem dados de prisões envolvendo homofobia nos estádios.

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Jorge Gauthier
Jorge Gauthier
Jornalista, adora Beyoncé e não abre mão de uma boa fechação! mesalte@redebahahia.com.br

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