Com olhos atentos e lacrimejados Marta Maria de Sá, travesti soteropolitana de 60 anos, contemplava do alto do Pelourinho as ruínas do antigo casarão onde morava. Além de um espaço acolhedor, onde pretendia descansar das mazelas que rodearam sua vida, Martinha perdeu também um sonho que foi construído com muitas dores e frustrações, e junto com ele a esperança de um dia ser plenamente feliz.

Nascida em 1956, em uma casa na Praça José de Alencar, no Pelourinho, a estadia de Martinha perto de sua família não durou muito. Aos 7 anos de idade, ela vestia-se com trajes femininos e aproveitava seu cabelo liso para simular franjas e tocá-lo delicadamente, como as mulheres faziam. Enquanto a prática era entendida pelo pai de forma indiferente, na mãe despertava uma fúria intensa: Prefiro ter filho bandido a ter filho pederasta, ela dizia.

A repressão não se restringia ao ambiente familiar, na escola, sofria com as palavras violentas ditas pelos colegas de classe: Sai daqui, viadinho, Sua bicha, Vai, baitola!. Além disso, a direção também não permitia que um garoto com comportamento tão feminino permanecesse frequentando as aulas, seria uma influência negativa. Com esse argumento, Marta foi expulsa do Colégio Azevedo Fernandes, também no Pelourinho, e não desejou nunca mais estar em um lugar onde não poderia ser ela mesma.

Os terrores de casa ficavam mais intensos, as ofensas se transformavam em ameaças cruéis. A jovem Martinha dormia com medo de ser atacada por uma injeção de estricnina (veneno para rato), como sua mãe lhe prometia repetidamente. A angústia do ambiente doméstico fez com que aos 12 anos Marta saísse de casa e fosse tentar a vida nas ruas. Sem ter o que comer e onde dormir, sentava nas escadarias do Terreiro de Jesus e chorava aguardando por ajuda, que raramente aparecia.

Sem opção, procurou emprego em casas de família, mas a humilhação parecia lhe perseguir. Era obrigada a levantar de madrugada para preparar o café sendo o tempo inteiro desmoralizada pela sua condição de travesti, tudo isso por um prato de comida ao dia e um canto para dormir. Revoltada, Marta retornou para as ruas a procura de algum destino.

A solução foi encontrada nos prostíbulos da Ladeira do Mijo, no Centro Histórico. Lá ela se abrigava junto a outras travestis e foi introduzida na atividade da prostituição. O primeiro cliente era um doutor muito rico que atendia no último andar do edifício A Tarde. Sem vergonha ou qualquer apreensão, Martinha entrou na sala que ficava em um dos últimos andares do prédio. Foi tratada como uma convidada, os dois se olharam intensamente, e até conversaram sobre o dia a dia, Como você está? , ele perguntou. Marta respondeu dizendo que estava bem, mas sabia que não estava ali para conversar. Sem querer perder tempo, se aproximou daquele corpo que aparentava ter cerca de 40 anos e fez o seu trabalho. Recebeu 500 cruzeiros com tanta felicidade que até riu ao contar, Na primeira vez é tudo muito bom né? Eu não tive medo da dor nem de ser maltratada, estava precisando muito e ele parecia ter bastante dinheiro. Ocorreu tudo bem, eu fiz minha parte, e ele fez a dele, mas não imaginei que nem sempre seria assim, declarou.

O mundo das meretrizes estava longe de ser o que Martinha tinha idealizado. Os clientes não pagavam tão bem e nem sempre havia espaço para todas. Em cada ponto das ruas, havia uma cafetina diferente, que organizava a distribuição das prostitutas no espaço. Era necessário pagar uma taxa a elas para permanecer no local. Quando o pagamento não acontecia, tinha de se retirar rapidamente do ponto, pois corria risco de tomar doce (espancamento feito por várias pessoas). Várias vezes alguns clientes se recusavam a pagar, quando cobrados faziam ameaças de morte. Mesmo com essas dificuldades, com muita perseverança ela permaneceu no ramo durante anos, entregando seu corpo para homens carinhosos, homens violentos, ladrões e uma enorme variedade de índoles e personalidades. O importante era ter dinheiro para se sustentar.

Com a queda de João Goulart e instituição do regime militar em 1964, a lógica policial passava a ser pautada no que era considerado como bons costumes sociais. Nem as travestis, nem a prostituição encontravam-se enquadradas nisso. Durante o período da ditadura militar, uma onda de caça à  s travestis tinha sido iniciada. Marta e suas colegas de trabalho fugiam da polícia quase todas as noites, mas quando não eram rápidas o suficiente, acabavam sendo levadas para um casarão abandonado no bairro de Stella Maris, onde eram espancadas, abusadas sexualmente e humilhadas.

Marta afirma que foi presa mais de 200 vezes durante o regime. Era levada para a Delegacia de Jogos e Costumes, no Centro Histórico. A delegacia era responsável por punir todas as pessoas que praticavam atividades consideradas como ofensivas aos valores da família tradicional. Praticantes de candomblé e umbanda, por exemplo, eram constantemente aprisionados lá. Quando pega polícia, além de apanhar, Marta era obrigada a fazer serviços de limpeza nas celas, tirar toda a maquiagem, remover o esmalte das unhas com tampinhas de cerveja long-neck e voltar para casa feito homem. Muitas vezes, mesmo sem estar trabalhando nas ruas, a casa de Marta era invadida pelos militares durante a madrugada e a levavam para fazer faxinas na cadeia.

Com hematomas na cabeça e na perna, o corpo de Martinha guarda até hoje as cicatrizes da tortura policial. Nos pulsos, as marcas de cortes relembram os momentos de quando era esquecida nas celas por dias, sem alimento, e precisava se cortar com as giletes que escondiam na boca. As giletes eram utilizadas como um instrumento de defesa contra clientes agressivos. O objetivo da automutilação era chamar a atenção dos policiais e ser transferida a um posto de emergência, de lá, ela finalmente conseguiria retornar para casa. As palavras proclamadas ainda soam em nos ouvidos de Martinha: Você é viado! Já viu viado ter vez? Vocês levantam falsa bandeira!, gritavam os militares.

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Após o final da ditadura, o sol da democracia não brilhou tão forte para o público LGBT. O início da década de 80 estava marcado pela descoberta da AIDS, que no momento era conhecida como peste gay. Martinha relata que não podia andar tranquilamente nos lugares públicos sem que as pessoas começassem a gritar AIDS histericamente e rissem dela. Nos ônibus, ela sentava nos bancos mais discretos, durante o percurso permanecia de cabeça baixa para que não fosse identificada como travesti e logo em seguida expulsa do coletivo, como normalmente acontecia.

No entanto, o temor do HIV e sua associação com as travestis foi utilizado também como uma nova forma de proteção. Toda vez que alguém tentava agredir as travestis elas mordiam as giletes e sangravam demasiadamente. O medo do sangue contaminado desesperava os agressores e fazia com que eles fugissem.

Durante boa parte de sua vida se sustentou ganhando dinheiro, através da prostituição e morando de aluguel. Ao vê-se envelhecendo sentiu a necessidade de garantir um lugar para que passasse os últimos anos de sua vida em paz, o sonho de ter seu próprio casarão nascia da vontade de respirar após uma vida tão turbulenta.

Para concretizar o desejo da casa própria, Martinha dobrou seu turno de prostituição, trabalhando arduamente do período da manhã até a madrugada. Do dinheiro, só era tirado a quantia necessária para comer e pagar a moradia, todo o resto ficava escondido dentro do colchão onde dormia. Depois de anos de arrecadação, Marta viajou para a Itália, onde sobreviveu também por meio da prostituição.

Martinha faz questão de dizer que se sentiu muito mais respeitada na Europa do que no Brasil, afirma que os homens eram mais doces, e embora o preconceito também existisse lá, dificilmente ganhava uma dimensão violenta. A vida na Itália permitiu que ela juntasse ainda mais dinheiro dentro do seu colchão, somando assim 14 mil reais.

Todo o dinheiro foi empregado na compra de um casarão na Baixa dos Sapateiros, onde Martinha viveu tranquilamente por 20 anos e abrigou idosos e outras travestis, um pequeno pensionato. Na noite do dia 9 de setembro de 2013, dois homens estranhos bateram à   porta do casarão de Martinha solicitando um quarto. A postura agressiva dos rapazes a deixou assustada e ela negou o pedido. Inconformados, um dos homens declarou: Não tem vaga, não, viado. Vou te mandar um doce!.

Logo em seguida, o casarão foi atacado com uma bomba molotov (mistura de substâncias químicas inflamáveis) que espalhou chamas por todas as partes. Martinha e seus hóspedes fugiram pela janela. O corpo de bombeiros chegou ao local sem água e solicitou o auxílio de carro pipa de Lauro de Freitas. A distância fez com que o casarão fosse consumido pelas chamas por inteiro.

Sem saber para onde ir, Martinha dormiu por semanas nos escombros da sua casa, até que conseguiu um auxílio moradia através do governo. Atualmente vive de aluguel na Fazenda Grande do Retiro, mas sonha com a recuperação da casa.
Os sonhos de Martinha foram queimados pelas chamas da intolerância e do preconceito. Hoje, os planos e expectativas para o futuro, são apenas cinzas de conquistas das quais ela nunca conseguiu desfrutar. Marta diz ter perdido a esperança no mundo, se frustra todos os dias com a expectativa de que obterá sua casa de volta.

Com uma mente atormentada por pensamentos suicidas e uma vida danificada pela discriminação, Marta Maria de Sá declara em alto e bom som: Eu não sou nem nunca fui uma cidadã. Estou apenas vegetando nesse mundo, esperando a morte. Isso é o que fizeram comigo . 🙁

Texto: Jordan Dafné participou da 11ª turma do programa Correio de Futuro
Crédito da foto: Heitor Oliveira,  que participou da 11ª turma do programa Correio de Futuro

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