Por Ceci Alves*
Rapsódias eram poemas épicos recitados nas praças, que contavam histórias de nações ou figuras heroicas, epopeicas. Algo parecido com a poética que o diretor Dexter Fletcher – o mesmo que assumiu Bohemian Rhapsody, cinebiografia do grupo inglês Queen, depois que Brian Singer foi destituído – imprimiu no seu mais novo filme, Rocketman, sobre a vida e obra do pop star inglês Elton John, que estreia nos cinemas na próxima quinta (30).
Como dispositivo para contar a história de como o tímido e recalcado Reginald Dwight se transforma no hitmaker e superstar internacional Elton John, Fletcher se deixou guiar pelo que havia de épico nas letras das canções e nos momentos de altos e baixos da vida do personagem, costurando, na justa medida, e com a linha firme do gênero musical, realidade, fantasia e sonho.
E é assim que Fletcher e o roteirista, Lee Hall, resolvem habilmente um nó górdio de todas as cinebiografias de artistas: como contar a história de uma maneira honesta, contemplando as nuances sobre as quais valha a pena se falar, sem melindrar ou ser injusto com nenhum dos egos envolvidos, vivos ou não. Em Rocketman, o principal fio condutor são as recordações que Elton desfia no grupo de reabilitação que passa a frequentar, quando resolve se limpar de seus vícios.
Nesta narração de sua vida, a figura over e kitsch do Elton John pop star, que irrompe a sala de reabilitação vestido de diabo estilizado, vai se despindo, numa metáfora clara do seu encontro dele consigo mesmo e com sua principal questão: a falta de amor que experimentou com sua família – filho de uma mãe à beira da negligência e de um pai com altas voltagens de masculinidade tóxica –, e com suas relações pessoais – seu primeiro empresário, John Reid, usa o relacionamento que tem com Elton para manipulá-lo e alquebrar ainda mais a sua já complicada auto-estima.
E este mecanismo usado pelos autores para contar a história através de uma descida aos infernos pessoais tem um desfecho belíssimo, tocante, bem conduzido pelo diretor e finamente executado pelos atores deste elenco bem azeitado: além de Taron Egerton no papel de Elton John (que encarna Elton à perfeição, inclusive cantando também), Jamie Bell, interpretando o compositor parceiro de longa data de Elton John, Bernie Taupin; Richard Madden, como John Reid; e Bryce Dallas Howard, como a mãe de Elton, Sheila Farebrother.
Assim, ao colocar a narrativa num clima confessional, e em primeira pessoa, o filme lava as mãos ao estar basicamente dentro da cabeça do próprio Elton. E lá, com o naturalismo, obviamente, deixado de lado, o musical toma corpo, com seus números cantados e coreografados. E, qualquer extravagância é permitida, como, por exemplo, Elton sair voando tal qual um foguete de verdade; encontrar-se várias vezes com o seu self, o menino Reggie que um dia ele fora; e desafiar a gravidade, como em seu primeiro show nos EUA.
As músicas foram sabiamente utilizadas como parte da narrativa, como diálogos entre essa consciência errante, torturada, porém fantasiosa de Elton, e a realidade quase sempre árida e estéril que ele enfrenta. Também neste ponto, Rocketman é bem mais honesto – sem deixar de ser rapsódico – do que o asséptico filme anterior do seu diretor, Bohemian Rhapsody. Foram tocados de uma forma aberta e franca temas como a homossexualidade não muito bem resolvida de Elton John; seus vícios e manias; suas explosões e acessos de fúria; suas vicissitudes familiares. Tudo em volta do verdadeiro mote do filme: de como ser solitário e sofrer por desamor, tendo à sua volta multidões que gritam seu nome.
Já do ponto de vista da encenação, o engenho cinematográfico ao qual Fletcher lançou mão para esta cinebiografia beira a maestria de uma obra-prima. Ele se baseia em cenas e lances reais da carreira do cantor e compositor para coloca-los diante dos olhos do espectador como espetáculo. Atenção especial à cena-resumo da entrada de John Reid, empresário e primeiro amor de Elton, na vida da estrela pop, que mostra, apenas com os atores andando e trocando de cenário – tal qual se fazia nos velhos musicais –, a ascensão de Elton ao estrelato pelas mãos de Reid, e o começo de seus problemas, como a compulsão às compras. Nesta cena, aparece lances à la Easter Egg, que só quem acompanhou a carreira do pop star inglês sabe, como a sua loucura por adquirir obras de arte e de quando, na década de 80, ele comprou um time de futebol na Inglaterra.
Outra cena que paga cada centavo do ingresso é de como a canção Goodbye Yellow Brick Road é usada para costurar a cena da briga entre Elton e seu parceiro de composições e amigo de toda uma vida, Bernie Taupin – com direito ao requinte de Taron Egerton estar vestido com um figurino que faz referências ao Mágico de Oz (de onde vem a estrada de tijolos amarelos); e a cena-crédito do filme, quando Fletcher reproduz, frame a frame, o videoclipe de I’m Still Standing, grande sucesso do cantor na década de 80.
E, em por falar em clipe, o filme já começa com uma referência: a longa caminhada dele pelo corredor do centro de reabilitação lembra em muito o plano-sequência de This Train Don’t Stop There Anymore, no qual o ator, cantor e compositor Justin Timberlake fazia as vezes de Elton John, inclusive dublando-o – e, pelo gosto de Elton John, era Timberlake quem faria seu papel no filme.
Assim, quem for ao cinema assistir Rocketman terá o melhor dos dois mundos: um filme competente, tocante e uma das mais engenhosas cinebiografias desde Johnny and June, que faz um panorama digno de uma das figuras mais icônicas da cultura pop mundial. “A história tinha que ser a mais honesta possível. Os baixos foram bem baixos, mas os altos também foram bem altos. E era assim que eu queria fosse que o filme”, confessa Elton John. Veja:
“Esse filme é uma releitura mágica do Elton John sobre a sua própria vida. Pelo Elton ser naturalmente quem ele é, sua história nos permite entrar em um mundo de fantasia e imaginação”, comenta Fletcher, no material de divulgação da película. Sem uma preocupação em deixar clara a temporalidade – nunca sabemos em que ano estamos, a não ser pela ambientação e figurinos da época –, e com todos os desregramentos das biografias de artistas pop – sexo, drogas e Rock’n’roll, assistir a Rocketman é embarcar, sim, na rapsódia boêmia de um diretor que ousa romper com a austeridade canônica que tem feito das cinebiografias um mercado promissor, mas não interessante do ponto de vista da linguagem cinematográfica. Um filme multifacetado e subversivo, tal como Elton John.
*Ceci Alves é cineasta e jornalista e escreveu esse texto em colaboração para o Me Salte. Ceci é Comandante en Jefe da ¡Candela! Produções Audiovisuais; Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas – PPGAC/UFBa; Professora do curso de Comunicação Social do Centro Universitário Jorge Amado; Professora da Pós-graduação em Estudos Culturais – Unijorge; Professora da Pós-graduação em Comunicação Organizacional – Faculdade 2 de Julho Salvador – BA