Por Marília Silva
Mesmo com a liminar que proibiu a apresentação do espetáculo O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu no Espaço Cultural da Barroquinha, o público pôde conferir a montagem na noite desta sexta-feira (28) em outro endereço. De acordo com a organização do Festival Internacional de Artes Cênicas (Fiac), que trouxe a peça a Salvador, a decisão judicial proibia o Espaço Cultural da Barroquinha, vinculado à Fundação Gregório de Mattos, a abrigar a sessão. A peça chegou a ser apresentada no local na quinta-feira (26), com casa lotada.
Protagonizado pela atriz, professora e ativista Renata Carvalho, que é transexual, a montagem questiona o que aconteceria se Jesus voltasse ao mundo na pele de uma travesti. O espetáculo é uma mistura de monólogo e contação de histórias em um ritual que traz Cristo ao tempo presente, na pele de uma travesti.
Como nem as produções envolvidas na realização do espetáculo nem outros espaços culturais da cidade foram acionados em nenhum processo, a organização do festival manteve a sessão, que foi apresentada no Teatro do Goethe-Institut (ICBA), no Corredor da Vitória.
O público pagante foi informado na porta do Espaço Cultural da Barroquinha, onde estava prevista inicialmente a apresentação, sobre a mudança de endereço. Por conta disso, o espetáculo começou às 21h, em vez de 20h. A situação mobilizou a classe artística e outros gestores culturais, que chegaram a oferecer seus teatros para receber o espetáculo assim que souberam da decisão.
“Nada impediu que o público que comprou ingressos para a sessão do dia 27/10 de O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu pudessem (vi)ver a o espetáculo bem distantes das proibições delegadas pela 12ª Vara Cível de Salvador, a partir de uma decisão do juiz de primeira instância que, mesmo sem conhecer o espetáculo e baseado exclusivamente nas alegações dos proponentes da ação, censurou a sessão no Espaço Cultural da Barroquinha”, diz a nota oficial emitida pelo festival.
A Fundação Gregório de Mattos foi notificada no final da tarde de sexta-feira (27) da decisão, o que, segundo a organização do Fiac, “dificultou qualquer possibilidade de recurso em tempo hábil”. A decisão judicial trazia como um de seus fundamentos a laicidade e alegava que a parte acionada desrespeitou o princípio constitucional previsto no art 5o, VI, qual seja a liberdade de consciência e de crença, pois não se pode “tentar, assim, eliminar os símbolos/crenças religiosas mais tradicionais do povo, com narrativas debochadas e fantasiosas, como que lhe arrancando as raízes”.
Situação semelhante já havia acontecido em outras cidades em que houve tentativa de censura à peça, mas com um desfecho completamente diferente do que aconteceu ontem em Salvador. Em Belo Horizonte, por exemplo, a juíza federal titular da 28ª Vara Federal, Cláudia Maria Resende Neves Guimarães permitiu a realização do espetáculo ao indeferir o pedido de tutela de urgência de caráter antecipatório por entender que “a liberdade de expressão é um elemento essencial em qualquer regime democrático, permitindo que a vontade coletiva seja formada através do confronto livre de ideias, em que todos os grupos e cidadãos devem poder participar. Em princípio, nenhuma ideia, escrito, obra de arte, peça teatral, etc, pode ser censurada”.
Também em Porto Alegre, o juiz José Antônio Coitinho da 2a Vara da Fazenda Pública se posicionou contra a censura do espetáculo e indeferiu o pedido liminar que tentava suspender a exibição da peça. Segundo ele, “não se pode simplesmente censurar a peça O Evangelho segundo Jesus, Rainha do Céu, sob argumento de que estamos em desacordo com o seu conteúdo. A liberdade de expressão tem de ser garantida – e não cerceada – pelo Judiciário. Censurar arte é censurar pensamento e censurar pensamento é impedir desenvolvimento humano”.