Nesta sexta-feira (25) completamos 100 dias de isolamento social em Salvador. Esse período tem sido de ressignificação para famílias LGBTQIAP+ e também de muita tensão psicológica naqueles lares onde não há uma aceitação da sexualidade. Anderson Fontes que é psicólogo, conselheiro do Conselho Regional de Psicologia da Bahia (CRP-03), psicoterapeuta junguiano, mestre em estudos interdisciplinares sobre mulheres, gênero e feminismo e doutorando em psicologia social, conversou com o Me Salte sobre como essas pessoas podem ter uma melhor convivência na pandemia. Confira:
Muitas pessoas LGBTQIAP+ foram obrigadas nessa quarentena a conviver com famílias opressoras com relação à sexualidade. Como essas pessoas podem melhorar a convivência?
A pandemia pela qual estamos passando está demandando de nós o isolamento social e, consequentemente, a hiper convivência com os familiares que moram conosco. Isso pode ser uma oportunidade para estreitar laços e para fortalecer vínculos, como, também, pode significar a emergência de diversos conflitos. No caso de pessoas LGBTQIAP+, que ainda não sejam assumidas ou cujos familiares não os respeitem, o fato de estarem isolados em casa com estes familiares pode representar ter que conviver com a ameaça constante à sua saúde mental.
Quais tipos de danos esse conflito forçado podem causar para essas pessoas?
As pessoas LGBTQIAP+ são marcadas por ausências de representatividade e, muitas vezes, possuem o padrão cisheteronormativo como o ideal, o que produz marcas nas suas subjetividades. Sendo assim, que o medo/vergonha, mesmo em tempos de pandemia, tornem-se orgulho. Quarentena não pode ser momento de silenciamento de subjetividades. Uma estratégia importante é o conhecimento e participação em movimentos sociais LGBTQIAP+ nesse momento, mesmo que de forma virtual agora.
Esse período de quarentena é o melhor momento para ‘sair do armário’? Um seguidor do Me Salte nos relatou que fez isso, aproveitando que está confinado com a família.
Em famílias nas quais essa questão seja tratada de maneira mais aberta e compreensiva, fica mais fácil “sair do armário”, e a convivência em tempo integral por conta da quarentena pode representar uma oportunidade para ressignificar os laços afetivos e fortalecer o apoio e a confiança entre seus membros.
As vivências familiares da maioria das pessoas LGBTQIAP+ são conturbadas. De que maneira isso pode se trabalhado para evitar o recrudescimento de conflitos?
É importante frisarmos que o momento da quarentena é um período passageiro e que serve para a garantia da preservação de muitas vidas. E que tudo que se pretenda fazer em relação à sua condição sexual e de gênero, só é possível quando se tem condições mínimas de segurança à vida.
Portanto, visando sempre o menor prejuízo, quando a própria vida está em jogo, seja pela ameaça do COVID-19, seja pela ameaça homofóbica dos familiares, o recuo estratégico para a preservação da integridade física e psicológica é sempre a melhor alternativa, ao tempo, que podemos compartilhar nossas inquietações e anseios com nossos amigos e familiares mais compreensivos para ampliarmos nossa rede de apoio e recorrermos quando necessário.
As pessoas transexuais vivem em situação de maior vulnerabilidade familiar normalmente. Como elas podem se trabalhar psicologicamente nesta quarentena?
As pessoas trans passam por marcadores ainda mais significativos no Brasil, considerando que somos o país que mais mata pessoas trans no mundo. Várias portas são fechadas, não só da subjetividades, mas, também, de vagas para pessoas trans no mercado formal. Vale destacar que são pessoas que também estão na linha de frente das violências. O Panamá, por exemplo, criou uma quarentena que institui que homens saem em um dia e mulheres em outros, alternando. Estaremos aí garantindo o direito das pessoas trans à saída no dia da sua identidade de gênero? Ressalto aqui também a importância de construir redes de apoio para esse momento que estamos passando.
Como as pessoas LGBTQIAP+ podem se blindar dos conflitos familiares nesse momento de quarentena?
Como estratégia para amenizar essa situação, alguns LGBTQIAP+ tem relatado que preferem fazer isolamento dentro do isolamento, que se trata em evitar o contato com os familiares mais preconceituosos e acessá-los somente quando estritamente necessário, evitando, inclusive, confrontos diretos. Em contrapartida, pode ser incorporada a essa estratégia a utilização das redes sociais para manter contato e intensificar os vínculos com amigos e parentes que estão distantes e que compreendam a diversidade sexual e de gênero.
O isolamento dentro do isolamento tem sido muito comum para as pessoas LGBTQIAP+ que vivem em famílias. Até que ponto isso é positivo e como isso deve ser trabalhado?
Isto poderá proporcionar sensação de acolhimento e de apoio durante o período de quarentena no qual a convivência social está restrita com as pessoas que moram conosco e que nem sempre podem ser nas quais buscamos amparo e proteção. Neste caso, é necessário termos cautela com atitudes que possam desdobrar-se em conflitos, como no caso de se assumir para a família, principalmente, quando ainda se está sob a tutela dela e ainda mantenha algum tipo de dependência.
Qual o momento certo para essas pessoas LGBTQIAP+ que estão em situação de conflito buscarem ajuda psicológica?
Quando não conseguimos identificar essas pessoas que podem nos servir de apoio ou até mesmo quando não estamos conseguindo lidar com essas questões de maneira saudável, podemos procurar ajuda profissional de um psicólogo. Atualmente, existem serviços e profissionais atendendo voluntariamente por conta da pandemia do COVID-19, e não há necessidade de procurá-los apenas em situações específicas, o enfrentamento à homofobia já se configura como uma questão que necessita de amparo e fortalecimento da pessoa para não sucumbir a este isolamento e às suas consequências. É nesse sentido, que a ajuda psicológica pode ser importante e fundamental.