Representatividade, provocação e ousadia conduziram o processo criativo dos estilistas responsáveis pelos figurinos de Tertuliana Lustosa, em seu novo projeto audiovisual ‘Sertransneja’. Assinados pelo artista plástico Fagner Bispo e pelo estilista Gefferson Vila Nova, os looks da cantora travesti – e nordestina – apresentam uma estética futurista que mesclam referências à Maria Bonita e à Iemanjá, além de elementos característicos da cultura LGBTQIA+ e ao sertão brasileiro.
As alusões utilizadas nas peças reafirmam a travestilidade de Tertuliana e contam as suas experiências trans no sertão nordestino. São diversas as TRANSgressões que embalaram o processo criativo dos 06 figurinos. As roupas apresentam um novo conceito sobre feminilidade e empoderamento, o corpo travesti, aqui, é uma obra de arte.
“Para além de trazer moda para este trabalho, atender às expectativas de um figurino único e criativo que pudesse dialogar com cada música e cenário foi um desafio maravilhoso. Propor composições que reafirmassem e apresentassem a identidade dessa nova versão de Tertuliana foi o objetivo. Conseguimos!”, detalha Fagner Bispo sobre o processo criativo dos figurinos.
Apresentar a travesti no contexto da moda que, por muitos anos, optou por manter uma ideia engessada dentro da estética conservadora, padronizada e elitista, é uma forma de redefinir e reapresentar o que é ser fashion sob uma ótica inclusiva, diversa e acessível.
“A escolha de cada material utilizado levou em consideração a mensagem que poderíamos passar para além daquela mostrada na música. No trabalho é possível conferir muita regionalidade, representatividade e inovação”, explica o artista plástico.
Cores e criatividade também caracterizam o trabalho construído para refletir as vivências e os sentimentos da multiartista. “Para a primeira música, por exemplo, canção principal e que leva o mesmo nome do álbum, optamos por utilizar no figurino de Tertuliana o azul, que faz referência ao mar, à Iemanjá e ao Porto da Barra, um dos locais mais conhecidos da orla de Salvador”, destaca Fagner Bispo. O tom faz referência ao ponto turístico onde, por muitos anos, Tertuliana vendeu brigadeiro, enfrentando as barreiras impostas pela falta de oportunidade no trabalho formal para pessoas trans.
Ainda no primeiro videoclipe, Tertuliana se TRANSforma em uma sereia. “Com uma cauda toda customizada em crochê, um trabalho 100% artesanal, trouxemos para esse look uma referência religiosa importantíssima em Salvador”. Vale destacar que a técnica utilizada na cauda é considerada tendência do verão de 2022. O look é composto ainda por um top de concha, trabalhado em couro fake com strass, que confere um visual moderno para o figurino.
O figurino de Tertuliana abraça ainda memórias afetivas dos seus laços familiares, principalmente com a avó. No clipe da canção intitulada ‘Saudade da Minha Avó’, o crochê aparece em aplicações num macacão em lycra vermelha, “junto a um adereço para a cabeça em formato de carcaça de cabeça de boi, toda cravejada com cristais”, detalha Bispo. A predominância do vermelho na roupa de Tertuliana e no cenário faz alusão ao sertão nordestino, ao calor e à seca.
Futurismo e sensualidade foram as fontes de inspiração na roupagem de ‘Toma desce, Toma Toma’. A principal referência para construção desse look foi a personagem Barbarella, vivida pela atriz Jane Fonda, na década de 60. O figurino traz à tona o poder feminino da travesti através da roupa que contorna o corpo de Tertuliana e da cor escolhida (prata).
Em ‘Não foi só um programa’, Tertuliana aparece com um conjunto de lingerie rosa composto por body de renda, cinta liga e meia-calça envolvida por um hobbie acetinado com plumas. Sexy e candy ao mesmo tempo!”, detalha Bispo. Nesse look, a sensualidade e o jeito “caliente” estão à mostra.
A peça mais trabalhada e com longo processo de produção aparece em Amor Encubado. Aqui é o lado diva de Tertuliana que vem à tona. “Elaboramos um vestido corset, digno de tapete vermelho. Foram 15 metros de tecidos na saia do vestido, recortado em camadas para lembrar uma flor. O corset exala feminilidade e é uma peça que está muito em alta atualmente, revisitado por várias marcas de moda”, explica Fagner Bispo.
Por fim, reafirmando mais uma vez sua travestilidade e identidade nordestina, no clipe Trava da Peste, Tertuliana é a Maria Bonita da atualidade. “A maior referência foi a rainha do cangaço! Escolhemos uma jaqueta perfecto cropped, mais uma minissaia. O look conta com pintura manual representando elementos que faziam parte da indumentária do cangaço e bordados com peças metálicas. Para coroar o look, chapéu de couro, um dos ícones da estética do cangaço”, explica Fagner trazendo à tona um dos símbolos do álbum Sertransneja, o chapéu de couro.
O olhar da artista
Para Tertuliana, os figurinos retratam os sentimentos que ela deseja passar em cada faixa, uma produção repleta de criatividade, numa sequência cheia de cores e conceitos únicos. “Senti, em cada roupa, a essência de cada música e do álbum, pois eles se articulavam com diferentes formas de pensar coisas que eu vivi. O chapéu de couro, a caveira que me remete muito ao bumba-meu-boi, enfim trouxeram uma pegada regional e futurista ao mesmo tempo, que é justamente o que acontece nos beats das músicas”, detalha a multiartista.
Cada canção é representada visualmente por uma cor, o álbum traz uma expressividade muito particular através das cores, similar a um arco íris, símbolo da cultura LGBTQIA+. A paleta utilizada no projeto visibiliza as existências travestis e trans do sertão nordestino e dão corpo às discussões trazidas por Tertuliana em cada faixa. São vivências únicas apresentadas em ritmos que fazem parte do cotidiano local.