A exposição “Cu é lindo”, assinada por Kleper Reis, é destaque dentro da mostra “Devires”, projeto artístico que propõe um exercício de desnaturalização das relações entre sexo, gênero, visualidade, raça e poder.  Em sua primeira edição, a mostra teve início no dia 12 de julho e segue com diversas atividades em Salvador até o dia 12 de agosto, das 9h às 19h, com entrada gratuita e com classificação de 18 anos. Desde o último final de semana aumentaram as críticas sobre a exposição e o espaço chegou a ser fechado. O Me Salte visitou a exposição e também conversou com o artista que explicou seus processos e procedimentos.

Veja entrevista completa: 

Como surgiu a exposição?
A ideia de uma exposição contando minhas histórias afetivas surgiu há muitos anos. Ela nasceu em meados de 2006. Neste período, eu já estava realizando performances, estava iniciando, e tinha uma projeto chamado “Incômodos: fragmentos reunidos de platão a mim!” (platão é em minúsculo mesmo. O minúsculo tinha valor simbólico para mim descolonial, queria questionar isso também).

Nesta passagem de minha vida na arte, eu morava em Salvador. Eu sentia uma forte necessidade de falar, mas para mim ainda era muito difícil. Tanto no processo pessoal da capacidade de acreditar em mim e ter valentia, como na possibilidade de ter espaço, reconhecimento e recursos disponibilizados para realizar este trabalho. Esta força criativa foi se desdobrando, pulsando e re-existindo até nascer aqui na Mostra Devires.

Vi que foi resultado de uma jornada de sete anos. Por que demorou tanto tempo?
Na verdade verdadeira, tem mais de 10 anos, mas seria difícil demais explicar, por isso sete anos. “CU É LINDO” é um processo de artecura inacabado, ainda não chegou ao final. A exposição não está finalizada. Faz parte de um tríptico de três trilogias em três movimentos que por medo não irei mencionar ainda publicamente o nome.

Estou me curando e esta dimensão não se desenvolve no tempo capital da produtividade ou na necessidade egoica e mesquinha de disputar espaços e narrativas, me distancio radicalmente disso. Meu trabalho de CUranderio de mim, de artesão, de agricultor e de artista vive em outro tempo, o acolhimento e o cuidado são as molas mais importantes.

O que acontece comigo é muito importante e valorizado, bem como as relações com a vida vivida, as minhas comunidades e as práticas políticas. Também tem o tempo da inflamação do coração, das noites selvagens e dos atentados contra mim. Importante dizer que, durante todo este tempo, a falta de acolhimento, seja na oportunidade de espaço para realizar o trabalho, como de apoio financeiro para realizar meus processos artísticos, foi fator importante neste processo. Leio estas faltas como dimensão da censura que sempre senti na pele durante toda a minha trajetória artística.

Sou um corpo homossexual, silencioso, descendente dos povos originários desta terra, com sotaque nordestino, sempre estive em uma fronteira de invisibilidade e desprezo.

Eucorpo sempre foi lido de diversas formas e usado e jogado no esquecimento, assim sinto, difícil traduzir. Devo ser cuidadoso nesta revelação de minhas intimidades. Durante estes anos, poucos espaços se abriram para mim. “CU É LINDO” é um processo que sofreu muitas interrupções. Iniciei minha pesquisa sobre o cu em 2011 e, no final deste mesmo ano, o assombro da violência e a força das memórias afetivas fez nascer a imagem simbólica “CU É LINDO”.

No início de 2012, sofri uma violência brutal, eu e três amigos, neste momento eu ainda estava forte e resisti bem. Força que me fez realizar no dia 7 de setembro de 2012 uma performance pertencente a este processo chama de CU É LINDO, CAPÍTULO 3: A CURA GAY, VERSÍCULO 14: O HASTEAMENTO DA BANDEIRA OU VERÁS QUE UM FILHO SEU NÃO FOGE À LUTA. Depois deste trabalho, sofri nova agressão que me devastou e entrei em isolamento interior. É difícil traduzir esta passagem de minha vida ainda. Depois disso, criei uma série de imagens e performances que, na sua grande maioria, encontram-se não realizadas, não tenho recursos e nem espaço disponível para atuar. Meu trabalho se desenvolveu, salvo raros momento, na rua. A rua era o único lugar possível, hoje nem mais a rua é uma possibilidade, sinto muito medo. Depois disso, só voltei a me apresentar uma vez no ano de 2013 e depois só em 2015.

Foi um momento difícil. Perdi-me de mim. Esqueci quem eu era. Neguei muitas coisas, pois me transformei em um outro partido e estranho a mim mesmo. Neste período de adoecimentos, muitas tristezas aconteceram e situações que me devastaram ainda mais. Fiquei em estado de calamidade e quase morri, aliás, morri de verdade. A morte simbólica como rito de passagem. Perdi minha organização interior e minha consciência foi tomada pelos fantasmas. Neste período, também fui saqueado artisticamente. Pessoas se sentiram no direito de se apropriar do meu trabalho e me jogar no esquecimento. Foram várias pessoas. Isso me matou mais uma vez.

Eu estava terrivelmente destruído. Graças à força de meu marido e de alguns amigues e afetos criativos e políticos, ainda consegui resistir e aparecer no II Seminário Internacional Desfazendo Gênero\UFBA\BA\2015 e no BEM ME CUIR\UERJ\RJ\2015. Momento que foi uma glória e um inferno. Depois do Desfazendo, fui perseguido e ameaçado e entrei novamente em isolamento. Em 2017, participei de uma exposição coletiva Os corpos são as obras\Despina\RJ\2017. Depois desta aparição, acontecimentos terríveis voltaram a acontecer, não quero ainda falar sobre isso. A vida é muito delicada.

Qual mensagem você quer passar com ela?
Desejo um outro mundo, uma outra forma de se relacionar com as pessoas, de ser reconhecido e de reconhecer. Quero pode falar sem medo de ser destruído, de ser roubado, de ser mal-entendido. Quero perdoar e ser perdoado. Quero fortalecer amizades e construir novas alianças para edificar um novo tempo nesta vida, o balanço necessário para a metamorfose que constrói o novo. Quero voltar a viver sem medo. Quero poder ser quem eu sou sem medo de ser censurado e\ou constrangido. Quero que parem de me ameaçar. Quero recuperar o que perdi de mim. Quero não ter mais vergonha de mim. Quero que meu processo artístico seja reconhecido, porque até hoje tenho que provar que sou artista.

Por que isso? Por quê? Quais são os recortes que precisamos fazer para compreender uma vida que tenta desesperadamente sobreviver e se realizar. Quero ressuscitar. Minha mensagem é de ressureição. “CU É LINDO” ME FAZ SAIR DO PECADO. PORQUE SE PECAR É ANDAR NO CAMINHO ERRADO, NÃO AMAR “OS HOMENS” É MEU MAIOR PECADO. NÃO LIBERTAR MINHA FEMINILIDADE É ESTAR NO PECADO.

A religião cristã em muitas dimensões sempre me obrigou a andar no caminho errado, ela sempre foi a manifestação da tentação do pecado de me fazer negar o que existe de mais profundo, lindo e verdadeiro em mim. KLEPER É LINDO. AFETO HOMOSSEXUAL É LINDO. TRANSEXUAIS SÃO LINDAS. LÉSBICAS SÃO LINDAS. A ÁFRICA E TODOS OS SEUS POVOS E RELIGIOSIDADE SÃO LINDOS. O XAMANISMO É LINDO. OS POVOS INDÍGENAS SÃO LINDOS… É UMA LISTA DE AFETOS GIGANTE QUE A CULTURA DO ÓDIO TENTA EXTERMINAR. “CU É LINDO” é a prova de minha inocência. Parem de nos matar!

Qual sua posição em relação aos posicionamentos do MBL (vi que estão criticando o fato de ser financiada por dinheiro público e fazendo uma série de acusações)?
Não desejo falar sobre eles. Não devo explicações a eles! O fascismo é uma força que vai contra a vida, é uma força assassina que retira o direito à vida e à existência. Olha o que está acontecendo com a Renata Carvalho, essa grande artista, ela, sua criação artística, está sendo censurada! Olha o que aconteceu com a Marielle Franco e com a Matheusa Passareli. Olhemos para o mapa da violência no Brasil! O fascismo é a força que usa das estratégias mais odientas e mentirosas para se sustentar. Tenho medo.

Quanto ao financiamento, é importante falar que a Mostra Devires é realizada por uma equipe de profissionais da mais alta competência e responsabilidade. Pessoas fortes e lindas que têm a minha mais profunda admiração e respeito. Nossa… fico emocionado de falar sobre a Giro, as curadoras e o Goethe. Elas e eles são algo intraduzível, dados o respeito e cuidado que tiveram por mim e por Devires, e por meu processo de cura e criação.

O Goethe e sua história e o atual diretor também são de uma força e acolhimento intraduzível. Máximo respeito, máximo apoio. No meu maior eco de expressão, grito GRATIDÃO, AMO VOCÊS!!! Não me sinto só. Nós temos todo o direito de ter acesso a este recurso do Estado da Bahia e do Estado Brasileiro!

A Mostra Devires ganhou este prêmio e todos nós trabalhadores deste processo recebemos cada um uma parte deste recurso para desenvolver seus processos de trabalho e criação. Somos muitos! É mentira afirmar que a Exposição “CU É LINDO” recebeu sozinha o que estão dizendo que recebeu.

O que me cabe neste orçamento é 0,7% do orçamento total. Estas pessoas que falam sobre a exposição e questionam os recursos estão inventando mentiras, porque de fato não existe nada possível de ser questionado. Eles fazem calúnia e difamação! Eles é que são os criminosos.

Em tempos de ondas conservadoras, qual a importância da Expo continuar em cartaz?
A exposição “CU É LINDO” traduz e condensa algumas dimensões do espírito de luta de nosso tempo. As forças fundamentais de continuarmos vivos porque nós existimos e temos o direito de existir nas mais amplas e vibrantes manifestações de estar no mundo. “CU É LINDO” nasce do desejo de cura e liberdade criativa e se desabrocha no espaço da intercessão que celebra a vitalidade que fortifica a potência, que todos possam existir de acordo com suas orientações interiores, singularidades. É uma ode à cultura da vida, do direito à vida e da dignidade da pessoa humana.

É um grande culto da fertilidade. É a energia de Pu’iito, Makunaima, Omolu, Iemanjá, Sankofa, Kundalini Shakti, Tantra Yoga, Kali e Hanuman. É um libelo em favor da vida. Falo em nome próprio e percebo que muitos sofrem de questões muito parecidas ou iguais às minhas. Cabe ao Estado Brasileiro fomentar e proteger as mais diversas e plurais manifestações da sociedade. É importante para mostrar que o Brasil luta por todos os seus filhos. O Brasil é um país que tem uma diversidade de culturas e línguas e isso deve ser respeitado, valorizado e fomentado.

Por que vc acha que o ânus/cu é tão tabu na nossa sociedade?
O Cu situa-se na região do Muladhara Chakra. É o Chakra raiz. Básico! O Brasil tem um forte problema de base, problema estrutural, e não consegue reconhecer plenamente isso. O Brasil é um país que mata desde seu primeiro sopro de vida! Brasil? Às vezes falar Brasil me soa estranho. Essa terra não se chama Brasil. Nossa raiz é uma história de sangue, de saques, de um grande genocídio material e imaterial.

O processo de colonização está matando até hoje e roubando. Os povos indígenas continuam sendo roubados e assassinados. São 500 e tantos anos de crimes impunes. O homem branco colonizador segue seus crimes impunemente e na certeza da impunidade. O tabu do Cu atravessa isso. Falamos de problemas e crimes que se iniciam na invasão destas terras! Falamos de feridas que continuam sangrando.

Em marcas e traumas que ainda não estão nem perto próximos de serem curados. Trabalho com a imagens simbólica do CU como sendo: CU É LINDO, CAPÍTULO 1: GENÊSIS, VERSÍCULO 3: O INTÓCAVEL. Minha formação em Yoga me permitiu acessar a cultura indiana e sua história. Me identifiquei com os intocáveis. É difícil ser um pária. É importante ter a dimensão e respeitar a luta e as possibilidades de sobrevivência desta população que vive na Índia. Minha pesquisa é afetiva e fundada nas minhas experiências de vida e conjunto de significações.

O cu é um pária. Nós, “as minorias”, os invisíveis e os intocáveis nas mais diversas manifestações e dimensões de sofrimento e luta, temos nossa história marcada pela impossibilidade de existir plenamente, de exercer a liberdade de transitar socialmente, de morrer feito nada e de sentir medo cotidianamente. Nós continuamos sendo assassinades. O Cu como símbolo de transformação apresenta uma gama grande de significados, logo o tabu do Cu, também.

Outro importante fato a ser mencionado é que quando saí de casa e fui morar em outra cidade, Salvador, para me assumir e viver mais próximo de mim, viver minha sexualidade plenamente, encontrei a poesia “Objeto de amor”, lá pelos anos de 2003. Ninguém tem noção da força deste acontecimento. Era um momento difícil, mas foi em um dia, quando comprei um livro de poesias reunidas da Adélia Prado, que, pela primeira vez em minha vida, ouvi uma narrativa positiva sobre o Cu. Sobre esta parte de mim tão querida e desejada.

Sobre esta dimensão de mim tão interditada e impossível. A cultura patriarcal, machismo, em alguma dimensão associa o cu à vagina, assim toda a atividade sexual do Cu deve ser abjetada. Onde quer que a mulher apareça ela é massacrada e menosprezada, e se for uma mulher preta pior ainda. São muitas densidades de observação e reflexão. Nunca tive a oportunidade de agradecer a Adélia por isso. Foi mais importante do que todos os anos de terapia que fiz. Gratidão, Adélia, você ajudou demais no meu processo de aceitação de mim mesmo. Você é parte fundamental deste processo de cura! asé

A exposição é bem pessoal e vi que você sofreu muitas violências; acha que a exposição faz parte do seu processo de cura?
A exposição sou eu. É uma expansão de mim. A exposição é a revelação de meu processo de cura. Sem esse processo, certamente eu estaria morto. Esse trabalho me salva de mim mesmo, me desacata, me sopra a vida futura. Ela me embriaga de vida. Quando os fantasmas me invadem e me fazem de refém, é ela que me salva, me liberta. Trabalhar com as imagens sem moralismo me cura. Sem esse trabalho artístico, eu já teria feito algo trágico, já tentei, estou aqui, ainda, existindo e resistindo e re-existindo. “CU É LINDO” É O SIMBOLO DA CURA GAY. DA MINHA CURA. E CONTINUARÁ SENDO POR MUITO TEMPO AINDA. É TRABALHO INACABADO.

Uma das fotos que mais me marcou foi a da espada. Qual a mensagem dela? Tem algo a ver com virilidade?
Ela nasceu de um sonho em vida. De um desses momentos de luta pela realidade, pela consciência. É um símbolo que me aponta caminhos para a minha reorganização e reconhecimento das origens e voltar a falar a linguagem das pessoas humanas. É difícil traduzir. Sou um tradutor com características de inventor, manifesto na imagem de Deus, o todo poderoso criador de minha existência. Sou um Deus capaz de ser o contador de minha história de vida, de recriar os mitos da criação e de criar minha vida, autopoiese. Ela é a imagem simbólica: CU É LINDO, CAPÍTULO 3: A CURA GAY, VERSÍCULO 3: BASTIÃO A HISTÓRIA DE UM CABRA DA PESTE.

Ela é a origem de tudo: é a manifestação simbólica de meu pecado original, a origem de minhas dores e sofrimento, ter nascido homem e ter sido designado pela sociedade e igreja cristã a cumprir o papel de homem. É a minha raiz nordestina e a imagem desse cabra da peste com o facão na mão. É a luta pela sobrevivência de minha família e sua história de fome e pobreza. Ela também é a visualidade da Santíssima Trindade ou dos Três Movimentos – Criação, Conservação e Destruição. Os três movimentos são uma força poética-teórica-autopoiética que trabalho há muito anos.

Publicamente, manifestei esta elaboração de mim pela primeira vez em 2009, quando apresentei a segunda parte do primeiro movimento do tríptico – Um Acontecimento em Três Movimentos ou Fragmentos de 1 Taquicardia no Rio de Janeiro. Os três movimentos nesta revelação eram o discurso do gênero, o discurso do amorpaixão e o discurso da carne. Era cruel. Era cru. Era a brutalidade do nascimento de uma vida. A força da dilatação e o surgimento da cabeça da nova vida fora da vagina. A luz ou a consciência de um novo Kleper que se ama e ama sem vergonha.

É a força simbólica da pós-escravidão manifesta na mitologia do salvador, o anticristo, o anticapital, o antifascista. O anjo de luz que nasce nos corações e salva a vida. Só ele é capaz de nos salvar. Nesta via de sentidos, ela tem algo a ver com virilidade, só no sentido mais potente e acolhedor desta energia. É a passagem da carta do Diabo que lembra a fertilidade que dá origem a vida. É a leitura das masculinidades e da união dos opostos. É meu processo de limpeza do masculino machista que enfiaram em mim.

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