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‘Aprendemos que o certo é gostar de meninos’, diz pesquisadora

Bacharel em Direito na Faculdade de Direito de Ribeirão Preto, Bruna Santiago Franchini é especializada em Políticas Públicas e Justiça de Gênero pelo Conselho Latino-americano de Ciências Sociais (CLACSO) e conversou com o CORREIO sobre heteronormatividade e heterossexualidade compulsória . Mais abaixo, ela indica nove textos para entender melhor o assunto.

Quando você começou a estudar sobre isso?
Estudo teoria feminista há quatro anos, sendo que fiz minha monografia sobre o assunto e acabei de entregar outra para concluir minha especialização. Participo da revista QG Feminista desde o início e o nosso principal objetivo é tornar a produção teórica e acadêmica feminista acessível. Por isso decidi escrever sobre a heterossexualidade compulsória.  Esse nome em si já assusta, e a maioria dos textos sobre isso estão em inglês, muitos sequer têm tradução oficial (muitas traduções que vemos por aí foram feitas por voluntárias que estudam o assunto).

Também decidi escrever porque esse conceito foi elaborado e cunhado por feministas radicais lésbicas, e, apesar de as lésbicas serem com toda a certeza o grupo que mais sofre com a heterossexualidade compulsória – por terem sua sexualidade não só apagada e deslegitimada, como instrumentalizada e até erotizada -, todas as mulheres vivenciam a heterossexualidade compulsória ao longo de toda sua vida.

E o que é heterossexualidade compulsória?
A ideia é de que, num patriarcado, a heterossexualidade não é só uma orientação sexual, mas uma ferramenta de controle, uma forma de manter a supremacia masculina. Por meio da hiper-romantização das relações heterossexuais – tanto afetivas, amorosas, quanto sexuais -, a mulher é levada a construir toda a sua vida em torno de homens. Ela é ensinada a priorizar relações com homens e a rejeitar relações com mulheres. Faz parte da heterossexualidade compulsória tanto a noção de que a heterossexualidade é normal e a homossexualidade/a lesbianidade são desviantes, quanto a construção de que “amizade entre mulheres não existe”, “mulheres são naturalmente competitivas”… tudo feito para minar as potencialidades de relações entre mulheres.

Esse conceito também explica o processo por meio do qual somos socializadas: a heterossexualidade compulsória não dita só que o ‘normal’ é a atração pelo sexo oposto, mas pelos papéis sociais que cada sexo desempenha. Então esse conceito explica que, num patriarcado, não basta uma mulher gostar de um homem e se relacionar com ele: é necessário que cada um desempenhe determinado papel nessa dinâmica de casal. Ou seja: a mulher ser submissa, dominada, emocionalmente dependente, cuidadora; e o homem ser o provedor, o que “pega mas não se apega”, o ‘másculo’, garanhão.

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Essa ideia de preservação dos papéis sociais de sexo também se manifesta quando vemos na sociedade a rejeição a pessoas que se negam a desempenhar tais papéis. Sabe aquela história de que ‘tudo bem ser gay, mas ser afeminado é demais’? A rejeição social à sapatão ‘butch’? Porque por trás da compulsoriedade da heterossexualidade está a necessidade de manutenção dos papéis sociais de sexo (o gênero, em outras palavras), porque tais papéis são essenciais pra manutenção da ordem social patriarcal.

Só mulheres sofrem com essa imposição?
Não. Afinal, homofobia também afeta homens gays e pessoas bissexuais de forma geral. Mas esse conceito da heterossexualidade compulsória foi elaborado especificamente pra explicar uma vivência feminina, e, mais ainda, a vivência lésbica.

Qual a diferença entre heteronormatividade e heterossexualidade compulsória?
A heteronormatividade, como a palavra em si diz, tem mais a ver com a noção de que existe uma norma pra determinados comportamentos e dinâmicas sociais – e essa norma é a heterossexualidade, a relação heterossexual. A ideia de ‘heterossexualidade compulsória’ tem a ver com uma análise das estruturas de poder que criam e se beneficiam da heterossexualidade enquanto instituição política, enquanto ferramenta de manutenção de determinada ordem social, como eu disse.

As análises propostas pelas feministas radicais lésbicas e que podem ser exploradas com base no conceito de heterossexualidade compulsória têm tudo a ver com papéis sociais de sexo e essas ideias de que existem “coisas de menina/mulher” e “coisas de menino/homem”, já que a heterossexualidade compulsória visa justamente reforçar que existe um lugar a ser ocupado, um papel a ser desempenhado por cada um.

Muitas mulheres descobrem que são lésbicas ou bissexuais só muitos anos depois do primeiro contato sexual por conta disso: porque somos ensinadas desde muito cedo que o certo é gostar de meninos, e que os meninos só vão gostar de nós de volta se usarmos rosa, se formos gentis e educadas, se não formos barulhentas, se usarmos vestido… é um choque quando descobrimos que existe a possibilidade de se atrair, de se relacionar, de se formar laços com uma pessoa do mesmo sexo que a gente.

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O conceito também nos ajuda a entender por que a dinâmica do feminino/masculino é presente mesmo em casais gays/lésbicos (num casal gay, um cara mais “masculino” e um cara mais “feminino”; num casal lésbico, uma mulher mais “feminilizada” e uma mais “butch”) – e, quando não está presente, a sociedade acha estranho, porque esperamos que haja um pólo masculino e um pólo feminino.

Enquanto mulher hétero, você  sofreu muito com isso também?
Eu sofri com isso no limite do que uma mulher heterossexual pode sofrer, sabe? Fazendo um balanço, eu vejo o quanto eu me submeti a relacionamentos muito abusivos por conta dessa ideia de que “mulheres têm que lutar pelo relacionamento”, “mulheres têm que ensinar homens como se relacionar”, “tem que ter paciência”, “homem é assim mesmo”. Eu fui ensinada a colocar meu amor próprio, meu orgulho, minha autoestima e meus limites de lado pra agradar homens. Eu fui ensinada a mudar minha aparência e minha personalidade pra ficar mais agradável pra homens.

Num contexto mais pessoal, eu digo que já sofri muito com isso de precisar me diminuir, me apagar, me ofuscar pra não “assustar” homens, sejam eles “potenciais” (pretendentes) ou já parceiros. Sabe aquela coisa de que mulher inteligente assusta? Mulher decidida assusta? Masculinidade é uma coisa muito frágil, e como eu sempre fui muito curiosa, crítica e estudiosa, passei muitos anos da minha vida me fazendo de burra e de desentendida pra que o cara pudesse se sentir “grande” do meu lado. Acho que isso foi o que mais me marcou.

Isso refletiu também na sua relação com outras mulheres?
A minha relação com mulheres, de forma geral, também foi muito afetada pela heterossexualidade compulsória. Como eu disse, faz parte da nossa socialização para a heterossexualidade aprendermos que “mulheres não são amigas de verdade”, que a amizade verdadeira só existe entre homens, e que mulheres não são confiáveis, são traiçoeiras… então eu passei muitos anos acreditando nisso, e focando em fazer amizades com homens. Só que por mais legal que um cara seja, nunca vai ser a mesma coisa que uma amizade entre mulheres.

Depois que eu comecei a estudar teoria feminista radical e mergulhar de cabeça no movimento, eu passei a centrar toda a minha vida em torno de mulheres. Reavaliei minhas amizades, minha relação com minha mãe, e até quem produzia os produtos que eu consumia – desde teoria acadêmica e obras de arte (como cinema e literatura) até bens do dia a dia, mesmo. Fazer esse “giro” na minha vida só foi possível porque eu entendi o quanto a heterossexualidade compulsória havia deixado marcas profundas na minha vida.

Nove textos para entender a heterossexualidade compulsória e a heteronormatividade

3 ● O que é lesbianismo político?, de Sapataria Radical

4 ● Sequelas da heterossexualidade, de Sapataria Radical

5 ● Heterossexualidade Compulsória, Lesbofobia e Resistência, de Sapataria Radical

6 ● Desfazendo o “natural”: a heterossexualidade compulsória e o continuum lesbiano, de Tania Navarro-Swain

7 ● O normal e o “abjeto”: a heterossexualidade compulsória e o destino biológico das mulheres, de Tania Navarro-Swain

8 ● Romper o tabu da heterossexualidade: contribuições da lesbianidade como movimento social e teoria política, de Jules Falquet

9 ● O pensamento heterossexual, de Monique Wittig

Gostou? Acompanhe, todas as segundas-feiras de maio, novas matérias sobre o tema aqui no Me Salte no especial LGBT O QUÊ?. Clique aqui. 

Naiana Ribeiro
Naiana Ribeiro
A jornalista ama Beyoncé, música pop, e é editora da PLUS, a primeira revista para gordas do país. Segue no Insta: @itsnaiana

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