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Artigo: Os espelhos do banheirão…

Por Alan di Assis*

Se o seu moralismo é mais utópico do que o seu senso de realidade é fatídico, então, talvez você deva ler esse texto em outro momento…

Para você, que continua lendo, quero falar sobre algo que é tratado de forma rasa e reducionista (um perigo), mas traz consigo inúmeras outras questões muito mais problemáticas do que a tentativa de estigmatizar um grupo ou, ainda, parecer aquele que contraria o estereótipo (enquanto o reforça contra si mesmo, fazendo coro a quem não se interessa pelas causas, mas apenas aponta as consequências dos reais problemas).

Você já ouviu falar em banheirão? Refere-se à prática de atos sexuais em – como sugere o nome – banheiros (públicos)… e como estes são separados por categoria de gênero, é comum que aconteça entre pessoas que usam o mesmo espaço (predominantemente masculino). Placas com o Artigo 233 do Código Penal estão espalhadas por esses locais a fim de inibir e impedir este “comportamento gay”. E é neste ponto que se inicia a nossa discussão: está é, de fato, uma prática gay? E, se for, o que isto nos revela? Que gays são promíscuos?

Ao contrário do que pensa o status quo, não são os homens gays – apenas – que se envolvem nestas relações marginalizadas – que são os atos obscenos realizados em banheiros públicos (de shoppings, estações de metrô, supermercados, etc.) –, mas tipos heterossexuais, com alianças em seus dedos e até mesmo, por vezes, com parceiras – namorada, esposa, família – à sua espera do lado de fora, encabeçam a libidinosidade do que acontece nestes locais. Curiosos, enrustidos, acuados… todos se encontram ali, onde ninguém vê, onde a aceitação de suas famílias, a admiração de seus amigos, o respeito de seus conhecidos e a manutenção de seus trabalhos não estão ameaçados. A masculinidade tóxica escorre pelas descargas ao mesmo tempo em que exala todo seu odor fétido nos mictórios à medida em que estes homens baixam a guarda para a experimentação e, ainda assim, tentam resistir com reproduções de um lugar-comum rude machista por não se admitirem como são. Mas eles – os homens heterossexuais – estão lá, acima de qualquer suspeita e aproveitando os gays como bode expiatório para toda e qualquer retaliação que, momentaneamente, possa os alcançar e ameaçar (a culpa sempre vai ser “dos veados”.

Admitindo este contexto (desta prática como pretexto para o “alívio” de vontades reprimidas) não cabe cobrar aos gays que, uma vez assumidos e vivendo a sua sexualidade, saiam desta posição secundária – por mais correto que isso pareça (ou seja). Afinal, em suas vivências práticas, o que eles mais experimentam depois de comunicarem as suas – já anunciadas por terceiros – sexualidades é a hostilidade. Então, essa ideia falaciosa de que homossexuais tem passe livre para viver suas vidas de um “jeito decente” (este tipo de “decência” imposta) perde força a cada vez que eles são mal tratados em motéis, mal atendidos em restaurantes, mal vistos quando de mãos dadas ou tão somente usam uma roupa que não corresponde às expectativas de cisheteronormatividade (e nem me refiro a aversão ao travestimento e todo ódio direcionado à comunidade trans (que devem ser amplamente combatidos), mas uma simples estampa ou comprimento mais curto nas roupas é capaz de tornar um homem alvo de ridicularização e repressão). Essas privações do ser é que os moldam… e como cobrar sensatez de quem não aprendeu sequer que tinha o direito de ser livre? “Vão para um motel ou para casa”, dizem de maneira simplista, mas muitos não tem esse dinheiro ou essa casa (o famigerado “local”), onde possam expressar seus desejos sem o olhar da vizinhança ou a reprovação dos seus.

“Mas por qual motivo as mulheres (independente de suas sexualidades), que também sofrem com a o tolhimento de sua libido, não tem esse mesmo comportamento?”. Você tem certeza que não consegue responder? Afinal, apesar de todas as conquistas e pequenos progressos, as mulheres tem a mesma liberdade sexual dos homens? Ou não vivemos em uma sociedade – ainda – patriarcal e misógina? Mulheres são – desde muito cedo – castradas de seus ímpetos eróticos. Os homens, ao contrário das mulheres, são estimulados ao prazer insaciável, fugaz e numeroso. Mas isto só é aceito quando se performa o cafajeste, “mulherengo” … homens gays são resumidos à promiscuidade quando agem como heterossexuais. Homens e mulheres homoafetivos são coibidos em sua voluptuosidade, mas de formas diferentes: mulheres, desde sempre, só por serem mulheres; e homens, após revelarem sua sexualidade, o que soa como “abrir mão” do privilégio hetero (e cabe aqui uma ressalva às dores das mulheres, e, em destaque, da comunidade lésbica e a urgência de suas pautas).

E mesmo que não houvesse toda essa mazela social, ainda assim, com certeza, alguns (talvez muitos) homens ainda sentiriam vontade de manter esse tipo de relação. Talvez por fetiche, até. E a pergunta emerge: são raros os relatos de heterossexuais que transam/transaram em banheiros? Essas histórias são contadas aos montes, por exemplo, nos vídeos de “eu nunca” DOS FAMOSOS. E por que, quando com eles, essa prática é tão cool e divertida? Considerando esta “régua de pudor usual”, seria um desvio – até – mais “grave”, visto que homens no mesmo espaço aproveitam a “oportunidade” criada, mas heteros para praticar o que fetichizam precisam premeditar e criar a oportunidade. A promiscuidade hetero tem que ser posta em questão, pois esse conceito – de imoralidade – tem dois pesos e duas medidas, já que se um homem e uma mulher desconhecidos decidirem se beijar publicamente por mero querer não receberão a mesma sentença de casais não heteros que o façam. Isto é apenas um dos tantos privilégios heteros denunciados pelos LGBTQIA+.

Uma reflexão no mínimo curiosa: as narrativas criadas por homens heteros, por exemplo, quando fazem oposição à utilização dos banheiros adequados por pessoas transexuais, usam o estupro como pseudoargumento. Não é reveladora a forma que estes homens entendem o banheiro como um ambiente para além das necessidades fisiológicas? Não é uma demonstração (quiçá uma confissão) de que eles enxergam o momento da micção como propício ao ataque? Não é inata ou exclusiva aos homens gays a conduta invasiva ou agressiva, inclusive no âmbito sexual, mas os homens heterossexuais é que protagonizam a esmagadora maioria dos comportamentos excessivos e violentos. Você pode reprovar os olhares, repudiar os gestos, deixar evidente o seu desconforto (e tem esse direito) caso seja assediado… tem também a opção de deixar de abandonar os mictórios e usar somente os boxes. Se essa última alternativa parece absurda – mudar um hábito por conta do mau comportamento alheio –, a ponto de gerar resistência, sugiro que essas mesmas objeções ganhem força no combate ao assédio contra as mulheres, que há muito tem de alterar suas rotinas (desde as vestimentas e suas posições em transporte públicos, até o horário que podem transitar sozinhas) a fim de não serem assediadas por homens heterossexuais em qualquer espaço público (e privado). Tudo isso expõe a desigualdade e a parcialidade deste debate.

É extremamente importante também que gays se libertem desta missão de vida de se provarem melhores do que os acusam ser, dignos da aprovação alheia, merecedores do mínimo respeito social por cumprir suas exigências morais que esbarram na hipocrisia. Tentar humilhar outro gay, rechaçando-o pelo que se aponta como imoralidade sexual pode ser tão cristão quanto a pregação do inferno aos LGBTQIA+, e dessa última prerrogativa nem os mais santos dos nossos haverá – segundo eles – de se salvar. Então, por que juntar-se àqueles que são os seus algozes? Para sentir-se menos culpado, menos sujo, menos transgressor? Nada te fará mais leve senão a autoaceitação e libertação desse fardo de “ser menos ofensivo” aos que lhe cercam. Que cada um dê conta de si e, quando inevitável o posicionamento, seja preferível o apoio à ruptura egoísta.

Este não é um texto em favor dos banheirões, mas – e espero que saibam interpretar – sobre os prejuízos de não atacar o “inimigo real” e os malefícios do enfretamento das consequências em detrimento das inúmeras causas. Esse tipo de situação tem se intensificado, sim, na maioria das vezes de modo absolutamente desrespeitoso e hostil. Se isso precisa ser controlado, que seja… que hajam vistorias, inspeções, supervisões nos espaços. Mas, acima de tudo, que aconteça a libertação dos nossos corpos; que haja a descriminalização moral do nosso sexo e do nosso afeto também; que, de uma vez por todas, ocorra a nossa retirada da marginalidade para a qual somos empurrados, enquanto nos esmagam. Enquanto for arriscado existir nos holofotes, o anonimato do delito será um escape, uma fuga. Esses gestos inapropriados são incômodos, mas se toda essa desigualdade não incomoda muito mais, então, não é com o “todo” que os “juízes” estão preocupados, mas apenas com seu conveniente bem-estar individual.

A homofobia – e todo tipo de PREconceito – está sempre à espreita, reduzindo e esvaziando debates urgentes e necessários… que suas opiniões sem fundamento não contribuam para essa conjuntura tão cruel; que o seu moralismo não seja mais utópico do que o seu senso de realidade seja fatídico.

*Alan di Assis (@alandiassis) escreveu esse texto de forma colaborativa para o Me Salte. Ele é jornalista, artista, ativista, pesquisador e produtor de conteúdo das relações entre homoafetividade e protestantismo/evangelho

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