Por Murillo Nonato, especial para o Me Salte
Tainan* caminhava pelas ruas vazias de Nazaré, bairro de Salvador, quando percebeu dois homens se aproximando na garupa de uma moto. Amedrontado, temendo ser assaltado, segurou sua bolsa com força e aguardou os motoqueiros fazerem a abordagem.
Diferente do que imaginava, os motoqueiros, ao o alcançarem, iniciaram uma série de ataques verbais em torno da sua aparência feminina e em relação a sua suposta sexualidade, mas se foram sem levar nada. Alex, por sua vez, se encontrava em um ponto de ônibus quando notou um homem em um veículo fazendo movimentos espalhafatosos com as mãos enquanto ria junto aos seus amigos. Logo percebeu que os rapazes ridicularizavam sua aparência feminina.
As histórias acima descritas são fragmentos retirados do meu livro “Vivências Afeminadas: pensando corpos, gêneros e sexualidades dissidentes” e ilustram reações comuns das pessoas diante de corpos afeminados.
O livro parte da análise da narrativas de vida de sujeitos que se consideram pessoas afeminadas para dissertar sobre suas formas de apresentação em termos de gênero, sua relação com a homossexualidade e o impacto que as leituras dos seus corpos geram socialmente e em suas próprias vivências.
No livro, as pessoas afeminadas são compreendidas como sujeitos lidos como homens no momento do nascimento, porém mesclam o masculino e o feminino em seus corpos tornando a sua aparência ambígua. Estes corpos se configuram como uma espécie de colcha de retalhos que se materializa na medida em que uma delicada agulha perpassa os códigos de gênero, costurando-os até formar a sua extensa malha.
Esse rompimento com as normas tem por efeito impossibilitar seu reconhecimento dentro do binário de gênero (oposição entre homem x mulher/ masculino x feminino). Defendo que essas divergências às normas possuem a potência de desestabilizar os discursos cisheteronormativos que organizam as relações sociais dos sujeitos revelando o caráter questionador destes corpos afeminados.
Por meio desse texto busco oferecer ferramentas que nos possibilitem
compreender os discursos formados em torno da sexualidade e do gênero, que dão forma a nossa visão de mundo, e as maneiras com que as pessoas afeminadas constituem seus corpos e sua performance de gênero como um marcador social da diferença.
Essa diferença é perpassada pela violência que funciona como um constante lembrete de que as normas não foram incorporadas adequadamente pelas pessoas afeminadas.
A forma e o conteúdo dessas violências expõem que, apesar de estarem ligadas também a sexualidade, é a relação complexa com o desvio de gênero que marca de forma mais intensa a sua narrativa.
Para entender o contexto social em que vivem as pessoas afeminadas hoje, no primeiro capítulo, “Feminilidades masculinas, patologização e sua relação com o conceito de homossexualidade”, discuto como, ao longo do espaço-tempo, as masculinidades femininas passaram por processos de transmutação em seus significados.
O objetivo da discussão é apontar que o significado atribuído a feminilidade masculina não é monolítico, mas fluído. Esse breve passeio pela história,
que nos levará da Grécia e Roma antiga até a atualidade, nos mostrará que a feminilidade masculina já foi associada explicitamente a uma forma de desvio de gênero e até mesmo a uma espécie de excesso de desejo heterossexual, completamente desassociada do desejo pelas pessoas do mesmo sexo/gênero, interpretação corrente na atualidade – inaugurada a partir da invenção da categoria de homossexualidade e da sua
patologização no século XIX.
No segundo capítulo, “Performatividade das Pessoas afeminadas: corpo, abjeção e dissidência”, discuto a matriz cultural do gênero desenhada por Judith Butler em “Problemas de Gênero”.
A referida matriz expõe que há uma série de mecanismos sociais que coagem os sujeitos a criem relações de continuidade entre sexo, gênero, desejo e prática sexual para que conquistem inteligibilidade no seio social, se legitimem como “sujeitos normais” e mantenham intacta a estrutura social vigente. Traduzindo em miúdos, a referida matriz revela que o sujeito, caso nasça com um pênis, por exemplo, precisa se entender e se apresentar na sociedade como homem e se engajar afetivo e sexualmente com outras pessoas do sexo/gênero oposto.
A partir do delineio dessa matriz disserto sobre as formas com que as pessoas afeminadas se distanciam desse modelo criando um corpo ambíguo a partir do embaralhamento dos códigos de gênero e também ao apresentar sexualidades múltiplas – não limitadas a homossexualidade.
Exponho através da minha argumentação que as experiências corporais e sexuais dissidentes das pessoas afeminadas revelam possibilidades outras de identificação quanto ao gênero e a sexualidade que nos permitem complexificar e questionar a segurança ontológica que fundamenta a experiência dos sujeitos, visto que ela foi constituída a partir de um processo de naturalização das formas de ser homem e de ser mulher refletido na matriz cultural do gênero que essas experiências mostram ser
constituídas socialmente e historicamente.
No terceiro e último capítulo, “Corporalidades afeminadas, violências e as
possibilidades de resistir e existir nas e pelas feminilidades”, proponho uma compreensão das performances das pessoas afeminadas a partir da perspectiva do fracasso desenhada por Halberstam em seu livro “A Arte Queer do Fracasso”.
A pessoa fracassada, na perspectiva desse autor, é aquela que carrega em si o peso da marginalidade, da exclusão, mas que também carrega, contraditoriamente, a potência da rebeldia, do confronto com as normas e do gozo a partir dessa marginalidade.
Partindo dessa asserção e das análises das narrativas coletadas aponto que as pessoas afeminadas, por meio de suas performances falhas/fracassadas, incorporam o erro como constituição de si mesmas e ressignificam o fracasso o tornando em algo prazeroso, em novas possibilidades de constituir corpos, desejos, subjetividades inquietantes e de ser/existir em uma cultura cisheteronormativa.