Alan di Assis*
O tom era de festa. Acredito que LGBTs que vivem no país que mais mata os seus iguais podem comemorar as suas vidas, mas devem reivindicar as suas mortes. Hoje, temos mais a chorar do que a sorrir. Apoiar a militância LGBT vai muito além de endossar tudo o que é feito. É necessário estimular a autoanálise e promover a autocrítica… A 18ª Parada LGBT da Bahia, que aconteceu no último domingo (22), traz à tona a necessidade de uma reflexão mais profunda sobre o cenário do ativismo LGBT na cidade.
No dicionário, “parada” é um “desfile de tropas”, e é importante evocar este significado para ressaltar o caráter militante que um ato como este deve assumir, principalmente quando se tem os “50 anos de Stonewall” – revolta que deu origem às paradas ao redor do mundo – como uma das temáticas do evento. A primeira reflexão é: conhecemos a nossa história? Nos importamos e aprendemos com ela?
Num dos momentos mais delicados da História do Brasil, a Parada de Salvador aconteceu como se fosse só mais uma, como se não estivéssemos vivendo num cenário de horror e obscurantismo que põe nossas vidas em risco, sem despertar uma real consciência da conjuntura sociopolítica que enfrentamos. Há uma semana, livros com temática LGBT eram censurados na Bienal, no Rio de Janeiro…
Não seria, por exemplo, uma oportunidade para que a organização pedisse para que quem fosse às ruas levasse um livro? Os discursos religiosos extremistas e inflamados que apontam os LGBTs como inimigos a serem combatidos tem ganhado adesão até daqueles ignorantes que não são religiosos… Não seria importante realizar uma performance como a da atriz Viviany Beleboni, transexual que desfilou “crucificada” na 19ª Parada LGBT de São Paulo, em 2015? E eis mais uma reflexão: como temos nos organizado e nos posicionado diante dos ataques? Nossas manifestações tem levantado debates e pautado discussões?
A parada deveria se parecer mais com as manifestações do #EleNão – de setembro de 2018 –, com gritos de ordem, cartazes, discursos e, mesmo as músicas, com mensagens coerentes, que reforcem o intuito da marcha. No entanto, o que se pôde ver no domingo foram diversos carros tocando forró, sertanejo, arrocha, funk, pagode e uma massa que seguia estes carros sem uma causa evidente que os movesse. Neste ponto, pode ser levantada uma problemática sobre as músicas que embalavam a caminhada. Existe, sim, uma cultura LGBT, da qual fazem parte ritmos e performances específicas e que estavam pouco representadas na Parada deste ano em Salvador.
Hinos de Madonna, Beyoncé são importantes, mas principalmente as canções de Pabllo Vittar, Gloria Groove, de Majur, Liniker, Linn da Quebrada, As Baianas e a Cozinha Mineira, Não Recomendados (e tantos mais, todos LGBTs) eram exponencialmente mais necessárias de serem tocadas do que qualquer “te amo e você nem ‘tchum'” e afins.
Cada detalhe faz diferença numa ação tão representativa (e que precisa representar a todxs), e a música/trilha (a arte de forma geral) é parte pulsante disto. Como estamos valorizando e apoiando a arte e o trabalho dos nossos? Como tem sido aplicado o nosso “pink money”? Este é outro ponto a se refletir…
Para este ano, a proposta era uma parada diferente. Pela primeira vez no Dique do Tororó, com minitrios, o novo formato propunha mais proximidade com o público, aproveitando a presença das famílias no circuito e incluindo-as na manifestação.
Tinha todo potencial para ser mais politizado, no entanto, serviu para promover uma sensação de “baixar a guarda”. Parecia muito mais uma festa preocupada em atrair e incluir os heterossexuais como aliados, sem chocá-los ou deixá-los desconfortáveis, do que com o protagonismo LGBT em si. Essa retórica de que “somos todos iguais” precisa ser repensada, uma vez que, na verdade, somos todos diferentes e a Parada do Orgulho LGBT tem (ou deveria ter) o intuito de celebrar, justamente, a diversidade.
Vale a análise: será que estamos incorporando o discurso do “chaveirinho de hetero”, diminuindo e mascarando nossas demandas para nos encaixarmos no padrão de “LGBT passável” – aquele que não incomoda e por isso é aceito? Estamos com medo?
Muitos LGBTs tem desistido da parada com o argumento de que, cada vez mais, se assemelha a um carnaval fora de época que não foca na luta pelos direitos e se tornou só mais uma festa. Ainda que haja razão nessa perspectiva, não se pode negar que o simples fato de milhares de LGTBS lotarem as ruas para sinalizarem a sua existência é relevante. Cada pessoa que leva a luta a sério e desiste do movimento não soma, mas subtrai à causa.
Quando uma forma de resistência se mostra defasada, precisa-se pensar outras formas de resistir, mas nunca desistir. Nossas opiniões e posicionamentos tem agregado ou desunido a nossa comunidade? Seria válido ceder por uma bandeira maior?
Se por um lado o público não pode abandonar e fugir de sua responsabilidade, a organização da Parada não pode se acomodar. Essa desunião egoíca que nos acomete precisa se dissipar ou, pelo menos, entender o limite da emergência para deixar de lado as diferenças e buscar emitir uma voz uníssona. Se não conseguirmos nos organizar enquanto grupo, nossas vozes dissonantes causarão confusão; não seremos ouvidos ou, quando ouvidos, a desarmonia de nossas vozes fará nossas demandas inaudíveis.
Não é responsabilidade nossa a violência que sofremos, mas é nosso dever apoiarmos-nos. É realmente necessário apontar culpados e eleger heróis? Não podemos conquistar juntos?
“Efeito de parar” é mais um dos significados do dicionário para “parada”, e essa foi a nossa verdadeira Parada LGBT de 2019. Precisamos urgentemente voltar a nos movimentar, de maneira organizada e unida, mover as estruturas.
* Alan di Assis escreveu esse texto de forma colaborativa para o Me Salte. Ele é jornalista, militante, pesquisador e produtor de conteúdo das relações entre homoafetividade e protestantismo/evangelho