Por Clarissa Pacheco
Ontem mesmo, ouvi falar de Amélia. Fazia tantos anos que eu não me lembrava da “mulher de verdade” que, imediatamente, vi meus neurônios conversando com esse texto da minha amiga e colega Amanda Palma, publicado aqui no Me Salte . Amélia, a mulher de verdade, não tinha a menor vaidade, passava fome e achava bonito não ter o que comer. A composição de 1942, uma parceria entre Mário Lago e Ataulfo Alves, é um dos maiores sucessos do cancioneiro popular brasileiro e eu desafio alguém que desconheça pelo menos o refrão da música.
Mas vem cá, e as mulheres de mentira, estão onde? Pintando o rosto, passando batom, trabalhando, vivendo, lutando para viver em um mundo em que suas funções não se resumam a lavar a louça, preparar o café, limpar o fogão? Ou, talvez, por um mundo em que levar pancada não seja algo tão natural? Não sei como andam as coisas do lado de lá do balcão, mas atesto, de cá do meu lugar de fala de mulher, que por aqui tá bem puxado.
Ontem à noite, compartilhei no meu perfil pessoal do Facebook o texto escrito por Amanda. E qual a minha surpresa (surpresa?) ao ver que comentários que discordavam do texto o faziam desqualificando o incômodo que é para nós, mulheres, vermos o machismo se disseminar em letras de músicas que colam na cabeça das pessoas, que são cantadas com tanta naturalidade por homens, mulheres e até por crianças.
A nossa geração – cá estou eu, aos 28 anos – é taxada de geração mimimi. Me pergunto é se as gerações passadas também não questionariam a objetificação da mulher em letras que se tornaram patrimônio, caso tivessem acesso às informações que temos hoje. Deixo para que elas mesmas respondam, mas acho que Elza Soares, em ‘Maria de Vila Matilde’, composição de Douglas Germano, já dá uma pista:
“Cadê meu celular?
Eu vou ligar pro 180
(…) Você vai se arrepender de levantar a mão pra mim”
É por isso que, de propósito, comecei esse texto por Amélia, a moça que não tinha vaidade, o mais ‘leve’ dos exemplos que catei por aqui sobre como o machismo entra nos nossos ouvidos sem que, muitas vezes, a gente nem perceba. E como esse sexismo bizarro afeta, a nós mulheres, de forma cruel. Naquele mesmo ano de 1942, quando ‘Ai, que saudade da Amélia’ foi escrita, Wilson Batista e Haroldo Lobo lançaram ‘Emília’. Vejam só:
“Quero uma mulher que saiba lavar e cozinhar
Que de manhã cedo me acorde na hora de trabalhar
Só existe uma
E sem ela eu não vivo em paz
Emília, Emília, Emília
Não posso mais
(…) Não desfazendo das outras, Emília é mulher”
Passaram-se 71 anos e, em 2013, Péricles lançou ‘Se eu largar o freio’:
“A pia tá cheia de louça
O banheiro parece que é de botequim
A roupa toda amarrotada
E você nem parece que gosta de mim
A casa tá desarrumada
E nem uma vassoura tu passa no chão
Meus dedos estão colando
De tanta gordura que tem no fogão”.
Vou parar por aqui, antes que ele largue o freio para cima da mulher que não consegue atender a todas as necessidades do provedor da casa…
Gabriel O Pensador – até tu, cara? – conseguiu escrever uma letra inteira chamada ‘Lôrabúrra’, em que nada – absolutamente nada – se aproveita. Em 1994, quando a música foi lançada, o Pensador disse que não odiava as loiras e que, inclusive, namorava uma. A crítica era às “playboyzinhas”. Depois, a música foi retirada do reportório:
“O lugar dessas cadelas era mesmo num puteiro
Só se preocupam em chamar a atenção
Não pelas ideias, mas pelo burrão”.
Piora consideravelmente:
“Eu já fui bem claro, mas vou repetir
E pra você me entender vou ser até mais direto
Lôrabúrra, cê não passa de mulher objeto”.
Para fechar com chave de ouro, a desculpa:
“Não sou machista
Exigente, talvez”.
‘Minha nega na janela’ é uma pérola de Germano Mathias, gravada também por Gilberto Gil no final dos anos 1970. Pô, Gil…
“Minha nega na janela diz que está tirando linha
Êta, nega, tu é feia que parece macaquinha
Olhei pra ela e disse
Vai já pra cozinha
Dei um murro nela e joguei ela dentro da pia
Quem foi que disse que essa nega não cabia?”.
Noel Rosa também não passaria incólume e o problema já começa no título, ‘Mulher Indigesta’:
“Mas que mulher indigesta
Merece um tijolo na testa”
Para não dizer que eu sou da geração mimimi, mas fiquei no século passado, é bom lembrar que, além dos sambas que tratam a mulher por menos do que ela tem direito, e das composições sertanejas que acham bonitinho e romântico um relacionamento abusivo, estão aí diversos outros ritmos musicais para mostrar que, entra século, sai século e a mulher continua sendo vista como objeto.
Vai desde a ‘Sem massagem’, Robyssão, que resume a história mais ou menos assim: você veio na minha casa, abriu minha geladeira e pensa que vai embora? “Fica aí, mulher, vai rolar um bacanal, você veio porque quis”. O complemento disso é algo do tipo “Senta, senta, senta, senta, senta…” Um senta senta sem fim e sem uma gota de respeito.
A extinta New Hit ficaria de fora? Claro que não:
“As mulher (sic) de hoje precisam aprender
Quatro letras do alfabeto
O.B.D.C”.
O que dizer, então, de uma música chamada ‘Espanca’?
“Empina o bumbum pra galera
Empina o bumbum sua donzela
Empina o bumbum pro Dudu
Que o Justin aqui espanca”.
Pois é, tá puxado.