Por Laura Fernandes, do CORREIO
“Ser diva é uma coisa muito séria”, “ficar no armário é horrível”, “para ser um bom travesti, tem que ter uma boa pele, boa manicure”. As frases que revelam e desnudam o universo das travestis estão reunidas no documentário Divinas Divas, que entra em cartaz nos cinemas dia 22 e marca a estreia, na direção, da atriz carioca Leandra Leal, 34 anos (O Rastro/2017, Justiça/2016 e O Lobo Atrás da Porta/2013).
O filme que será lançado em um trio elétrico na Parada LGBT de São Paulo, domingo, reúne a primeira geração de artistas travestis do Brasil no palco do Teatro Rival, que pertencia ao avô de Leandra, Américo Leal, um dos primeiros a abrir suas portas para homens vestidos de mulher, nos anos 1960. Oito divas têm sua vida revelada no filme que acompanha o processo de construção de um espetáculo que comemora seus 50 anos de carreira. São elas: Rogéria, Divina Valéria, Jane Di Castro, Camille K, Fujika de Halliday, Eloína dos Leopardos, Marquesa e Brigitte de Búzios.
Os bastidores da maquiagem, do figurino, do glamour são mostradas pelas lentes da câmera que observa tudo através das coxias e revela conversas sobre questões de gênero, dificuldades e preconceitos. A escolha estética não acontece à toa, já que se confunde com a história da própria diretora: filha da atriz Ângela Leal, Leandra cresceu pelos corredores e camarins do Teatro Rival, assistindo vários artistas.
Quando viu as oito travestis reunidas no Rival, em 2004, ano em que o teatro completou 70 anos, Leandra percebeu que precisava registrar aquilo. “Vi o espetáculo pela primeira vez e fiquei impactada com a força delas em cena. Quis fazer alguma coisa, mas não sabia o quê. Comecei a conversar com elas – curiosidades minhas sobre a trajetória de cada uma, a relação familiar -, aí em 2007 eu assumi pra mim: ‘cara, vou fazer um documentário sobre elas. É isso. Elas são o foco’”, conta Leandra.
Junto com o documentário, veio a ideia de registrar o espetáculo para comemorar os 50 anos de carreira das oito divas. “Quis filmá-las da forma como sempre olhei para elas desde a infância. Sou fascinada por esse universo do bastidor. É um filme de fã, uma declaração de amor a elas, mas também uma declaração de amor ao meu ofício”, garante Leandra, que narra o documentário em primeira pessoa.
Careta
Fotos antigas, vídeos e recortes de jornal de época são usados no filme para resgatar momentos marcantes da carreira das divas que abrem seus camarins e revelam questões sobre as mudanças no corpo, como o uso de hormônios e a cirurgia de mudança de sexo.
Leandra acredita que Divinas Divas chega num momento oportuno para contribuir com o debate sobre gênero. Ao mostrar, de forma humana, uma geração de artistas que revolucionou o comportamento e desafiou a moral de uma época, o filme consegue transcender preconceitos e estereótipos, segundo a diretora.
“Essas artistas começaram suas carreiras na ditadura, época em que que era proibido se vestir de mulher na rua, mas por outro lado tinham mais espaço nos teatros do que hoje. Então a gente está falando sobre uma sociedade que encaretou”, critica. “A gente tem uma onda conservadora crescente de intolerância, de ódio, e costumo dizer que minha melhor arma é fazer o que eu faço”, pontua.
Antes mesmo de estrear, Divinas Divas já conquistou uma série de prêmios e dois deles foram no Festival do Rio 2016: prêmio de melhor documentário pelo voto popular e melhor documentário pelo Prêmio Felix (voltado para produções com temáticas sobre a diversidade de gênero). Além disso, conquistou o prêmio do público da Mostra Global do Festival South by Southwest, em Austin, no Texas; melhor filme pelo júri popular e melhor direção no 11º Fest Aruanda do Audiovisual Brasileiro, em João Pessoa.
Diante das conquistas de seu primeiro filme como diretora, Leandra vibra, mas garante que é muito realizada como atriz e que só vai assumir a direção de novo se o projeto for pessoal como esse. “Tem que ser uma ideia que me persegue, como Divinas”, explica. “A coisa que mais aprendi com elas foi o comprometimento com o ofício, essa relação quase romântica que elas têm por esse momento de estar em cena e a coragem de ser quem você sonha, quem você é”, finaliza.
‘Dificuldades não me impediram’, diz Divina Valéria
Cantora, atriz e transformista com mais de 50 anos de carreira, Divina Valéria, 72 anos, conta no documentário Divinas Divas que a primeira vez que vestiu uma roupa de mulher foi no Carnaval. A cantora que nasceu no Rio de Janeiro e adotou Salvador como segunda casa diz que a primeira peruca, por outro lado, foi usada na janela de casa, onde gostava de ficar encarando o trânsito, “fingindo que era mulher, da cintura para cima”.
Tudo isso aconteceu na década de 1960, época em que a repressão estava cada vez mais forte, por causa da Ditadura Militar. “Não podia andar na rua vestida de mulher, só de táxi. Duas vezes eu fui na mala do carro para o salão”, revela a cantora carioca Jane Di Castro, travesti que também participa do filme. Foi exatamente por conta disso que Divina Valéria chegou a ser presa, na época, mas a cantora de alma baiana não se deixou abater. “Todas essas dificuldades não me impediram de fazer o que eu queria, que era viver dessa forma”, conta.
Revelada no musical Les Girls, com outras travestis, em 1964, Divina Valéria já se apresentou em países como o Uruguai e a França, tendo como referência cantoras como Dalva de Oliveira (1917-1972) e Elizeth Cardoso (1920- 1990). Ao longo da carreira, dividiu o palco com artistas de diferentes gerações como Maysa (1936-1977), Nana Caymmi e Roberto Carlos.