Por Tailane Muniz
Uma luta que não seria necessária se as pessoas fossem mais humanas. Não no sentido biológico, mas intelectual: que compreende o direito de ser, ir e vir que tem o outro. Homossexual orgulhoso, como se identifica, o cabeleireiro Milton Carmo Santana, 40 anos, defende que a “falta de humanidade e flexibilidade” explicam a Revolta Stonewall – movimento revolucionário que marcou, no final da década de 60, em Nova York, a indignação de um povo que não sucumbiu à repressão que sofriam, apenas, por ser.
São 50 anos, nesta sexta-feira (28), da revolta que, para o público LGBTQIA+, marcou e originou a luta pela vida de um povo que, em dias atuais, morre violentamente a cada 19 horas, no Brasil. A data marcou, hoje, a realização da Sessão Especial Onde o Orgulho Começou: 50 anos da Revolta de Stonewall e a Luta e Resistência dos Movimentos LGBTQI+ em Salvador, no Plenário Cosme de Farias, na Câmara Municipal da capital.
Proposta pelo vereador Marcos Mendes (Psol), o encontro, 1ª dedicado ao público, homenageou personalidades que, de alguma maneira, contribuem com a luta que, lembram, é diária. “Nossa peleja começa dentro de casa, quando somos expulsos por nossos pais, mães, tios e tias, por sermos quem somos. Só por isso. As pessoas precisam ser flexíveis, humanas, e não cruéis e rudes. Diariamente, enfrentamos o mundo lá fora e é por esse direito, o de existir, que estamos aqui”, comentou o cabeleireiro Milton, que milita pela causa há mais de dez anos e disse que não poderia faltar o encontro com os seus.
Ao CORREIO, Marcos Mendes comentou que a Revolta de Stonewall, ocorrida em um bar gay de mesmo nome, localizado no bairro de Greenwich Village, em Manhattan, em junho de 69, simboliza a libertação a nível mundial. “É um processo revolucionário que se iniciou por aquela gente que vivia oprimida, que sangrava a carne, oprimidos por uma polícia truculenta que água-viva n nome da ordem em um dos países que, dizem, ser um dos mais democráticos do planeta”, afirmou, sobre os LGBTQIA+ que foram para o enfrentamento com as força se do Estado.
Para o vereador, a ‘sessão colorida especial’ simboliza a liberdade e a resistência de uma “luta que ainda precisa de muitos avanços sociais”, inclusive, por parte das forças públicas. “Aquelas pessoas não suportaram mais a opressão e se miraram em referências como o movimento hippie, os Beatles, o Pop. Trazer isso para a Câmara é um orgulho imenso, uma realização pessoal e do meu partido, que é declaradamente defensor dos Direitos Humanos”.
Orgulho
O movimento de ‘guerrilha’, ocorrido no Bar Stonewal Inn é definido pelo ex-deputado federal e jornalista baiano Jean Wyllys como o processo de transição de um povo que sentia vergonha, para um grupo de pessoas que, hoje, tem orgulho de ser quem é. “Stonewall nos fez sair da vergonha para o orgulho de ser quem nós somos. A ideia de orgulho, passa a ser importante. Sair de todos os armários e ocupar todos os espaços. Essa audiência é muito importante”, comentou Wyllys, em vídeo exibido durante a sessão, iniciada por volta das 19h.
Editor do Me Salte, canal de notícias LGBTQIA+ hospedado no Jornal Correio, Jorge Gauthier recebeu uma placa de reconhecimento pela militância do público dentro da comunicação. “A luta contra o preconceito passa pela informação. Precisamos cada vez mais informar as pessoas quanto às necessidades e luta por direitos da população LGBTQIA+ para que haja mais respeito. A sessão especial hoje na Câmara de Vereadores é um passo fundamental para que mais pessoas tenham conhecimento sobre o tema”, comentou Gauthier.
Mulher, negra, lésbica e urbana, como faz questão de se identificar, a comerciária Josélia Ferreira, 40, defende que o movimento americano marcou e serviu como um registro de “resgate” da dignidade de pessoas que, por muito tempo, chegavam a viver em “auto-negação”. “A gente precisa lembrar da necessidade de se indignar e de confluir com outras bandeiras de luta. Porque a gente não anda tranquilo e nunca andou, é uma luta que está, ainda, se encaminhando. Desde o seio familiar, todos os ambientes são hostis conosco”, lamenta ela, que afirmou que, necessariamente, um LGBTQIA+ “precisa ser militante”.
Coisa que a bancária Bárbara Alves, 44, sabe bem. Segundo ela, se entender enquanto lésbica lhe trouxe, a tiracolo, a sensação de estar sempre na iminência de ser violentada – de formas variadas. “Eu precisei entrar na militância gay e fiz isso, há dez anos. Antes, no entanto, precisei pertencer à luta pelas mulheres, simplesmente porque não havia uma bandeira LGBTQIA+. Estar aqui, hoje, é um ponto que trabalha a nossa autoestima, o nosso orgulho de ser”, complementa.
Ator transformista, outro homenageado, Bagageryer Spielberg destacou que as referências ao público LGBTQIA+, no âmbito artísticos, ajuda a “comunidade” a ser vista de uma maneira positiva. “Isso aqui é, antes de tudo, uma vitória. Infelizmente, ainda é algo que precisamos frisar: um direito tão simples, e que também é nosso. Meu desejo é que os jovens, especialmente eles, compreendam a importância deste momento, diante do cenário complicado em que estamos vivendo”, destacou.
Reconhecimento e representatividade
Uma das homenageadas da noite, é a primeira vez da psicóloga Ariane Senna na Câmara dos Vereadores de Salvador. A primeira noite como homenageada em um sessão pública, para a primeira psicóloga transexual da Bahia. Ariane é, também, primeira mulher trans a ocupar um cargo público no estado. Analista da Defensoria Pública, ela afirmou que a noite é o reconhecimento do que já sente do público LGBTQI+, a partir de suas realizações.
“Eu lembro que fui expulsa de casa aos 13 e, até os 17, precisei me prostituir. Meus pais diziam que eu não ia dar para nada na vida e hoje estou aqui. Mas quero dizer que visibilidade não é sinônimo de garantia de direitos, uma coisa não tem a ver com a outra. Ainda é muito triste que sejamos violentados em tantos lugares, que sejamos sempre relacionados a temas como HIV”, disse.
A psicóloga também comentou que a sessão possibilita, também, uma rede de relacionamento entre pessoas que lutam pela mesma causa. “Eu fico muito feliz pela homenagem e pelo fato dela acontecer junto a outras pessoas que, como eu, têm potencial para muito mais. Principalmente, por isso estar acontecendo aqui e não em uma casa onde o principal assunto é a Aids”, destacou ela, também agraciada por uma placa do Orgulho.
Aos 19, o bailarino Lucas Davi Sousa disse que, ao chegar no local, logo constatou: “Sou o mais novo aqui”. A falta de outros jovens, acredita ele, tem a ver com a dificuldade de se compreender enquanto gay, lésbica, transsexual e demais gêneros e orientações. O motivo, para ele, se explica com uma sociedade onde o julgamento sobre como a pessoa se identifica importa mais do que as próprias ações.
“Nós não somos bandidos, fora da lei. Eu já sofri muito porque meu pai não me aceitava em casa. Minha mãe, sim, sempre me respeitou. Atualmente, depois que ela morreu, sim, passei a ter meu espaço. É muito triste ser vítima de tudo isso dentro de sua própria casa. Estou muito feliz de estar aqui hoje, queria que outros jovens estivessem”, comentou ele, reafirmando que, todos os dias, o lema é “resistir para existir”.
Importante destacar que nenhum vereador , além do proponente da sessão, esteve presente no ato.
Veja fotos do evento- Fotos: Betto Jr