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Nu Reconvexo ‘Café Muller’ de Pina Bausch por Felipe Ferreira

dissipo no
es-pa
ço
borro a matéria

|| Corpo – História.

O manto maculador que oprime as metáforas e os significados do corpo em seu estado bruto, é tecido na rédea normativa de um adestramento histórico que sufoca desejos e castra liberdade. O título da peça de Nelson Rodrigues ainda é aplicado de forma fidedigna e se faz atemporal ao sintetizar a dissimulação ideológica e comportamental que determina o que é certo e errado numa sentença moral de falsos pudores e arcaicas hipocrisias.

Na infância nossa relação com o corpo é moldada por uma série de limitações e isolamentos. Esse cárcere territorial iniciado com zelo e sutileza, ganha mordaças mais consistentes com o passar dos anos. Nascemos nus para imediatamente vestirmos dia após dia, muito mais que a reles carcaça. No distanciamento do apertar de mãos, na frieza do abraço ou no toque de carinho inexistente, as relações afetivas sensoriais e imaginárias criadas com o outro e com nós mesmos, é fatalmente atravessada por uma nuvem de puritanismo que transforma mastubarção em pecado, nu artístico em pornografia, a cena de sexo de um filme em atentado violento ao pudor, prazer em perversão.

No teatro, aprendi que “um corpo é só um corpo”. E para isso, precisamos abandonar o sentido reducionista da frase e nos lançarmos na potência vulcânica que ele representa no cais de cada história.

reage no
es
pas-mo
de um sofrer lírico e profundo

|| Um Corpo, Mil Olhares.

Do passado, os corpos encarcerados perambulam cegos na trincheira de ávidos olhares. Piadas infames, gargalhadas histéricas nas aulas de educação física, as não idas à praia, o assédio moral e cívico constrangedor do alistamento militar. A sociedade cultua a perfeição e demarca cada corpo num ferrete seletivo de preconceitos e fobias.

A desconstrução é um ato implosivo e a estetyka dos padrões só vira escombro quando nos permitimos enxergar as substâncias que constituem nosso ser por um prisma de subjetiva excentricidade. Ao quebrarmos esse espelho que aprisiona nossa imagem no falsete ilusório de uma projeção idealizada, descolonizamos tudo que nos silencia e nos impede de flutuar na etérea divindade de sermos aquilo que somos.

Solto na gravidade inexata.
Salto meu corpo no mundo.

Em abril do ano passado, fui convidado para assinar a matéria de capa da 6º edição da Revista Digital do Coletivo Ponto Art . Fiquei eufórico com a possibilidade das minhas palavras capitanearam o tema principal de uma revista transgressora e de forte identidade local. Sem sequer saber o tema, aceitei o desafio que – na verdade – ainda estava por vir. A proposta era acompanhar uma vivência com atores e performances da cena artística soteropolitana que traziam no corpo o poder questionador dos seus discursos.

De peito, coração e alma arreganhados, cheguei na Casa Preta disposto a sentir da forma mais orgânica possível a verdade que cada trabalho expelia. Entre pênis, vaginas, peitos, bundas, pentelhos, músculos e trêmulas carnes, observava reconvexo in(transe) baile cada provocação no seu microcosmo e no universo sensorial que, juntos, conseguiam orquestrar.

Aquele domingo despiu meu íntimo da conserva e de qualquer resquício que ousasse enquadrar em uma definição cartesiana o que deve ser sentido, ainda que no jogo das aparências, pareça não ter sentido algum.

o corpo feminino é refletido
simultâneos,
egoístas,
libertários e independentes mentes que saciam
no livre arbítrio do rizo do mar

 Hori Leal (@horileal do @estudioaga)

Hori Leal (@horileal do @estudioaga)

Um ano depois, troco a casa pelo apê. Das paredes impregnadas de narrativas me vejo diante a infinitude azul do céu carioca. Fui selecionado pra ser um dos entrevistados do programa “Apartamento 502”, no Canal Brasil. A assinatura do sensível e renomado Jorge Bispo me fez encarar o tormento de me despir em pixel, vídeo e longo alcance como um detalhe cotidiano que não usurparia o protagonismo libertário que aquele ato de desconstrução representava.

Lá no alto do 502 olhei pelo reflexo das luzes naturais que invadiam os cômodos o trajeto que havia feito. Cada escolha, cada apelido, cada arrepio, cada cicatriz, cada transformação. Dono de mim! Estar ali totalmente desatado, imerso na essência artística do projeto e livre pra falar sobre meu rito de autoconhecimento e aceitação foi um vivência que lavou minha alma no gozo sublime do ser!

|| Pina: Corpo – Fluxo – Frame.

Antes disso tudo, como num prólogo psicografado na gênese da criatura, participei de uma Oficina de Crítica ministrada pela equipe da Revista Barril. Entre as atividades propostas, estava assistir o vídeo com a performance de “Café Müller” de Pina Bausch disponível na íntegra no Youtube. Lá atrás, fomos apresentado por intermédio de Almodóvar, no seu filme Fale com Ela (2002). No fragmento da película nos falamos pela primeira vez e sob o efeito hipnótico de cada movimento me deixei cadenci-ar. Agora, nas entranhas do acaso, após regressar nas suas cores, elucubrei sobre ela como na fumaça de uma café por inteiro.

Contemplá-la em sua plenitude me fez pensar sobre o corpo que habitamos e como essa ocupação oblíqua está diretamente vinculada ao seu convívio com a órbita ao redor. À medida como o compreendemos, consequentemente, aceitamos sua corporeidade com outras vibrações no infinito vai-vem existencial.

no livre rodopiar de um devaneio noturno caloroso de Shakespeare
olhos fechados,
braços estendidos,
a delgada linha entre a recepção e a entrega

Me ver na tela será uma experiência semelhante ao deslocamento entre o espírito e a matéria. É como dormir, sentir aquele organismo invisível alçar voo, fintar os olhos na sua superfície e se reconhecer na fragilidade, na fortaleza, no desprendimento e na aceitação.

Continuemos a hablar…

*
Apartamento 502
Estreia, nesta sexta-feira (28), 0h, no Canal Brasil.

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Crédito da primeira ilustração: Lola Fernández Corral (@lolafdezcorralart)

Jorge Gauthier
Jorge Gauthier
Jornalista, adora Beyoncé e não abre mão de uma boa fechação! mesalte@redebahahia.com.br

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