O sexo do bebê é algo celebrado desde o acompanhamento médico da criança com as ultrassons, até os festivos chás de revelação. Mas o que poucas pessoas sabem é que nem todo mundo nasce com o sexo masculino ou feminino. Segundo dados da Organização das Nações Unidas (ONU), 1,7% da população mundial é intersexo. No Brasil, cerca de de 495 pessoas intersexo nasceram, anualmente, entre os anos de 2011 a 2016, com base em dados do Ministério da Saúde (MS). Na Bahia, esse número é de 40 pessoas por ano.
Embora soe como algo novo, a comunidade intersexo já teve uma considerável lista de nomes dados por médicos e pela própria sociedade. Entre eles: hermafrodita, genitália ambígua, intersexo (como preferem ser chamados) e, mais recentemente, a comunidade médica tem adotado o termo “distúrbio da diferenciação sexual”.
(Foto: Divulgação)
Fato é que o nascimento de pessoas intersexo é mais comum do que muitos imaginam – e, por isso, é preciso responsabilidade ao falar do tema. Se quando o assunto é gênero e sexualidade, o padrão binário não é o único, a discussão sobre sexo tem seguido o mesmo rumo.
Segundo a Sociedade Norte-americana de pessoas intersexo (ISNA), esses casos compreendem até 41 variações diferentes. No Brasil, o número ainda é um pouco reduzido: conforme cataloga o Ministério da Saúde, os casos de pessoas intersexo são separados em oito categorias.
Urologista especializado na área, Nilo César Leão explica que intersexo – ou pessoa com distúrbio da diferenciação sexual, como prefere chamar – é uma condição meramente física. A identificação se dá quando o médico tem dificuldade em definir se aquela criança é do sexo masculino ou feminino: “Em primeiro momento, o diagnóstico é dado com base na avaliação da genitália do indivíduo. Logo após, é analisado por equipes multidisciplinares que envolvem especialistas da psicologia, do direito, pediatras, urologistas, cirurgiões. Com a ajuda familiar, é decidido o sexo da criança”.
O especialista esclarece que o sexo é baseado em três fatores: genético, gonadal e fenótipo.
“Esses três trabalham de maneira conjunta de forma que o genético define o gonadal, que, por sua vez, define o fenótipo […]. É a afinação destas três coisas que define o sexo do bebê. Qualquer alteração no cariótipo, na função das gônadas [glândulas sexuais que produzem óvulos ou espermatozoides] ou em ambos gera um feto com fenótipo ambíguo”.
Com base na análise destes três fatores a equipe multidisciplinar montada, junto à família irá decidir o sexo da criança. “Essa decisão é tomada com base em uma série de exames genéticos, de imagem, de laboratório e etc.”, esclarece Nilo. Ainda segundo ele, a cultura ocidental tem como tradição, dentro da área médica, tentar operações que possam aproximar a genitália do indivíduo ao máximo de uma genitália normal, dentro do sexo escolhido pela equipe multidisciplinar e pela família.
Mas até chegar à uma conclusão leva tempo e muitas dúvidas podem surgir para a família. Pensando nestas variáveis que o novo assunto traz para as famílias, as psicólogas Ana Karina Cangussú-Campinho e Isabel Maria Sampaio montaram a cartilha Dignidade da Criança em Situação de Intersexo: Orientações para Família.
“As famílias chegam achando que seus filhos são os únicos. Esse material diz que ‘não’ e mostra que essas pessoas devem ser acolhidas em sua diversidade”, pontua a psicóloga.
O material é gratuito e está disponível . Além disso reúne todos os passos que os pais devem fazer após receber a notícia de terem tido um filho intersexo. O material possui linguagem fácil e é norteado por uma história ficcional, mas com base nos vários anos de atendimento das psicólogas em consultório.
Capa do Livro de orientações às famílias ( Foto: Reprodução)
Nilo e a psicóloga Ana Karina Cangussú-Campinho integram a equipe multidisciplinar montada no Hospital Universitário Professor Edgard Santos, o Hospital das Clínicas. Apesar de não ser um centro de referência oficial, o Serviço de Genética Especial da unidade se tornou centro de referência local que presta assistência a pessoas intersexo.
No Brasil, não há nenhum centro de referência para assistência de pessoas intersexo, mas o MS informou, por meio de nota, que “os intersexuais têm direito ao acesso ao Sistema Único, que dispõe de atendimento multidisciplinar, seja na Atenção Básica, Atenção Especializada, além de instituições vinculadas a ele que a garantem a assistência à Saúde”.
Movimento intersexo A letra “I” é uma das últimas incluídas na sigla brasileira, LGBTQ+, e o motivo é justamente porque o movimento intersexo ainda é novo no Brasil. Começou a se articular em 2015, com o Coletivo Intersexo, que mais tarde se torna Associação Brasileira de Intersexos (ABRAI). Ainda em processo de oficialização, a organização tem intenção de defender as pautas da comunidade. Segundo o membro Shay Bittencourt, atualmente a ABRAI é a única em atividade no país, já que a Organização Internacional Intersexo (OII) está inativa, no Brasil, há alguns anos.
A Associação atua com projetos que informam e educam a sociedade quanto à condição de intersexo.
Conforme adianta Shay, a associação pretende se articular com o conselho federal de medicina para alterar normas relacionadas às cirurgias em crianças intersexo.
“Quando um bebê nasce intersexo, é comum passar por cirurgias plásticas meramente estéticas para ‘corrigir’ seu genital fazendo ele parecer mais com um genital considerado típico. Essas cirurgias muitas vezes são feitas em bebês com menos de 2 anos de idade e são irreversíveis”, argumenta.
Cirurgia O alerta de Shay retrata a realidade da cabeleireira Eliane Garcia da Rosa. Ela conta que seu drama começa antes mesmo do nascimento da filha, Manuelly Stopiglia, hoje com 3 anos. Em uma das sessões de ultrassom, ela questionou ao médico se estava tudo bem e ele lhe respondeu: “Você vai ter uma menina, mas tá ‘estranho’”.
Em alguns casos, como no de Manuelly, a corporeidade intersexo pode estar ligada a malformações e até situações que ameacem a vida do indivíduo. Após o parto, a cabeleireira soube que a filha havia nascido com má-formação congênita chamada extrofia vesical. Crianças com essa condição nascem com a barriga aberta e com a bexiga exposta. Além disso, Manuelly nasceu sem vagina e com metade dos testículos.
“Sem a minha autorização, mexeram na genital dela. O médico me disse que seria apenas um procedimento para auxiliar na regulação do trato urinário e seria um tratamento progressivo, mas me entregou ela com a cirurgia feita, inclusive uma plástica que adequou seu órgão a uma vagina”, relata a Eliane.
Eliane e a pequena Manuelly (Foto: Acervo Pessoal)
Ela ainda denuncia a incapacidade de alguns médicos não preparados para lidar com casos como o da filha. Segundo Eliane, a cirurgia equivocada deixou a criança com incontinência urinária e fecal permanentemente. Para Shay, isso está ligado à postura médica. ”Após o parto, a família recebe a notícia de que seu bebê nasceu diferente e, junto à apresentação desse ‘problema’, vem uma solução: a cirurgia”, afirma.
Assim como os líderes do movimento, Eliane defende que existe uma idade para que a cirurgia seja realizada e deve ser quando a criança tiver como decidir.
Embora em países como Austrália, Nova Zelândia, Nepal, Índia, Canadá, Alemanha, entre outros, o terceiro sexo já seja reconhecido pelo estado – o que possibilita o registro da criança com sexo indefinido -, a discussão parece não ter alcançado o Brasil.
Ainda que a ex-deputada federal Laura Carneiro (DEM) tenha pensado na PL 5255 – projeto de lei que modifica a lei de registro civil e permite o registro do terceiro sexo -, a discussão não foi à frente e não tem previsão de votação em nenhuma instância. Desta forma, a família é obrigada pelo estado a decidir um sexo para a criança e então registrá-la o quanto antes, para que seja reconhecido enquanto indivíduo perante a sociedade.
A deputada lamenta que a iniciativa nunca tenha saído do papel:
“Pensamos nisso quando uma pessoa do meu gabinete, que era intersexo, me falou da importância em ser reconhecido perante o estado, independente de seu sexo. Há ainda os constrangimentos que isso pode causar à pessoa na vida adulta”.
Além da proibição da cirurgia em recém-nascidos, a comunidade intersexo deseja que o registro do terceiro sexo seja um direito assegurado por lei e que a cirurgia só seja feita quando o indivíduo tiver idade o suficiente para decidir por si. “Existem pessoas intersexo que, independente da condição que nasceram, se identificam com outro gênero e isso deve ser respeitado”, pontua o integrante da ABRAI Shay Bittencourt.
Mini-glossário
Fator genético Avalia os cromossomos. A combinação 46 XY indica o sexo masculino, enquanto o 46 XX indica feminino. As demais combinações são enquadradas como Intersexo.
Fator Gonadal Avaliação que identifica se o indivíduo tem testículos ou ovários.
Fenótipo A forma como as características físicas que são observáveis, como o tipo de cabelo, cor dos olhos, etc.
Mensagens da comunidade intersexo
Não é gênero é uma condição física que não determina gênero nem sexualidade. Além disso, tem 41 variações.
Não é doença embora tenha sido invisibilizada ao longo da história, e alguns médicos encarem como um corpo que precisa de conserto, não é uma patologia.
Sexo não é binário Além dos conhecidos XX e XY, há múltiplas combinações cromossômicas possíveis
Mais visibilidade As pessoas precisam saber que não existe só sexo masculino (XY) e feminino (XX).
*Com supervisão da editora Ana Cristina Pereira
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