Mãe, pai, não tem motivo pra se desesperar. Primeiro porque ser trans não é algo ruim: o problema é a disforia de gênero, que é o sofrimento com o corpo e a identidade atribuída no nascimento. Ainda de acordo com o médico Alexandre Saadeh, coordenador do Ambulatório de Transtorno de Identidade de Gênero e Orientação Sexual (Amtigos) do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), outra questão é não se precipitar. “Não dá pra falar que crianças são trans. Dá para dizer que elas têm uma questão de gênero ou, se não for isso, que elas vivem uma fantasia. Temos que ter cuidado para não fazer diagnóstico precoce inadequado. As coisas devem ocorrer no tempo da criança, e não no dos pais”, afirma o psiquiatra.
Foi o caso de Joana Rocha*, 35, mãe de Gabriel* de 13. “Num belo dia de janeiro do ano passado eu recebi uma carta, na qual ele me contava que não era quem todo mundo pensava: que é um menino. Ele estava se apresentando pra mim. Eu não desconfiava de nada. Pra mim, era uma garota normal, ativa, que gostava tanto de coisas ditas masculinas quanto das ditas femininas. Depois passou um filme em minha cabeça e tentei rememorar coisas, tentar ver o que eu não havia enxergado. A gente fica tentando reconstituir, mas não tem o que reconstituir: é a história do sujeito”, pontua Joana.
Uma vez detectada essa questão, o negócio é orientar, principalmente a família. “Os pais não são culpados de nada, pois simplesmente não há do que ter culpa. Ninguém fez nada de errado com aquela criança: aquilo é da base biológica dela e ela precisa ter aquela vivência em seu desenvolvimento. Também não é questão de escolha, tampouco moda”, diz Alexandre. Segundo ele, entre os 2 e os 6 anos, o diagnóstico é bem difícil, por ser um período de fantasia e experimentação do universo. Dos 6 aos 9, a criança começa a ter mais contato com as repressões do ambiente, da escola, dos pais, das outras crianças… De 10 a 12 anos vem a preocupação com a alteração corporal por conta da chegada da puberdade e das mudanças nos corpos dos amigos. “Aí começa uma vivência realmente muito conflituosa para quem tem uma questão de gênero. Dos adolescentes que buscam o ambulatório, mais de 90% realmente são transexuais e mantêm o diagnóstico inicial”, conta o psiquiatra.
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Nem todas as pessoas trans têm a sorte de encontrar uma mãe como Joana, que cursa Psicologia, trabalhou 10 anos com psicanálise e é cantora. Sensível e preocupada com a felicidade do filho, quando solicitado que escrevesse um artigo para nossa série, ela respondeu com um pequeno poema, elaborado alguns dias antes. “Por nove meses eu disse: quero é que venha com saúde. Por minha vida eu digo: eu quero é que viva com saúde”, escreveu ela.
João*, 24, viveu situações mais tensas. “Foi bem difícil. Meu pai disse que tinha vergonha de mim. Depois disso, não nos falamos mais, não existe mais uma relação. Minha mãe tem depressão e iniciou uma crise grave. Mas hoje está mais tranquila”, relembra o historiador.
O apoio da mãe foi de grande importância na vida de Gabriel na escola. “A parte mais complicada foi garantir os direitos dele por lá. O menino estava sem usar o banheiro. Foi duro ver que os colegas já conviviam com isso bem, mas que os adultos ainda o chamavam pelo nome antigo. Ainda teve a situação de uma orientadora tê-lo chamado no canto para repreendê-lo. Escrevi uma autorização para o nome e exigi que ele pudesse ter acesso ao banheiro. Tive reunião com diretor, orientador…”, conta Joana. De acordo com ela, depois da revelação, o menino ficou até mais tranquilo. “Ele era bem agitado. Por anos eu recebi queixas na escola. Sempre tinha muita. Depois dessa declaração, não teve mais… Ele foi da água pro vinho. Era uma inquietação da pessoa, acho que uma luta”, pondera ela.
Para o médico, carinho e compreensão da família, juntamente com o acompanhamento psicológico, são fundamentais para o bem estar das crianças e adolescentes trans. “Até o início da puberdade, tudo que se pode fazer é atenção dos pais e psicoterapia. O Conselho Federal de Medicina estipula 18 anos como idade mínima para hormonioterapia e 21 anos pra cirurgia de redesignação sexual. Há uma nova resolução em construção e eu torço para que ela inclua crianças e adolescentes”, declara Alexandre.
A importância da inclusão de tratamentos para essa população no Sistema Único de Saúde (SUS) vai além do óbvio – saúde é um direito humano e constitucional – e leva a uma questão de longo prazo. “Acompanhar, orientar a família e a escola evitam que um adulto tenha complicações como depressão, abuso de drogas e transtorno de personalidade, que são enfermidades comuns em cerca de 70% dessa população adulta. Quando há acompanhamento na infância e adolescência, conseguimos mudar a vida dessas pessoas. Fazer intervenções cabíveis no tempo correto diminui custos, drama e necessidade de grandes intervenções na vida adulta”, explica o médico.
Se acessar a Justiça para obter a retificação do nome em documentos só é possível quando a pessoa completa 18 anos, há outras medidas para suavizar o sofrimento dos jovens. Um decreto assinado pela ex-presidenta Dilma Rousseff que está em vigor desde o ano passado em todo Brasil determina que a pessoa travesti ou transexual poderá requerer, a qualquer tempo, a inclusão de seu nome social em documentos oficiais e nos registros dos sistemas de informação, de cadastros, de programas, de serviços, de fichas, de formulários, de prontuários e congêneres dos órgãos e das entidades da administração pública federal direta, autárquica e fundacional. Apesar disso, tramita na Câmara Federal, desde maio do ano passado, um projeto de lei que deseja suspender o direito de transexuais e travestis. A iniciativa leva assinatura de um grupo de 28 deputados, entre eles a baiana Tia Eron e o pastor Marco Feliciano.
*Nomes fictícios de pessoas que preferiram não ser identificadas