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“Eu não me sentia nem homem e nem mulher”, diz Céu Rocha, pessoa não-binária

*Por Céu Rocha

Bom¦ foi difícil escrever esse texto.

É a primeira vez que falo sobre isso abertamente, muitos amigos vão ficar sabendo através dessa publicação. Eu tô muito nervosa. Quando eu escrevi não sabia nem como começar. Exitei muito antes de postar, mas sinto que está mais que na hora.

Eu gostaria de falar sobre minha identidade de gênero.

Quando eu era criança, imaginava que quando eu crescesse seria uma menina. Eu me imaginava com seios, cabelo grande, vestindo roupas lindas (consideradas femininas) e com uma linda maquiagem. Eu até imaginava como seria meu nome de menina.

Mas nessa mesma época, eu ouvia coisas horríveis sobre essas pessoas, pessoas que nasciam meninos mas se transformavam em meninas, assim era como eu entendia. Travecos, era isso que me diziam que essas pessoas eram, logo em seguida vinham as associações com prostituição, promiscuidade e outras coisas consideradas abomináveis pela sociedade.

Eu fui crescendo e com o passar do tempo fui esquecendo esses pensamentos. Eu não pensava mais que seria uma menina quando eu crescesse.

Me envolvi com o cristianismo e me afundei em um mar de ignorância, perdendo-me, esquecendo de me conhecer. Para mim, naquela época, não tinha porquê me conhecer já que havia um livro que dizia tudo que eu era.

Depois de anos em total escuridão, achando que estava em luz, eu consegui aceitar uma parte de mim. Eu me reconheci como gay.

Então, começou o meu processo de desconstrução, de me conhecer e de me aprofundar na militância LGBT+. Depois de 18 anos, eu comecei a me reconhecer. 18 longos anos de inaceitação, ofensas, lágrimas e outras coisas horríveis.

Eu comecei a aprender que aquele desejo de usar coisas femininas e performar feminilidade não era algo único das mulheres, existiam homens que também faziam isso, e eles podiam fazer isso, pois feminilidade não pode ser associada apenas à   mulher, assim como masculinidade não deve ser associada apenas ao homem.

Eu entendi que não precisava ser uma mulher para usar e fazer coisas contidas na caixinha das meninas. Comecei a pensar que era um homem feminino, durante muito tempo achei isso e me afirmei dessa maneira. Até então me sentia contemplado por essa concepção. Estava convicto.

Mas, por dentro, eu ainda me sentia incomodado com isso. Eu não entendia o porquê, mas sempre me incomodei em ser chamado de homem, em ser visto como homem. Eu não conseguia me identificar com esse gênero que me impuseram assim que eu dei o primeiro choro ao sair da barriga da minha mãe. Mas eu também não era mulher. Eu não conseguia me enxergar dentro desse gênero. Não tinha vontade nenhuma de me hormonizar ou transicionar para me assemelhar ao corpo feminino, apesar de que não acredito que ser mulher se resuma a isso. Eu estava bem com o meu corpo.

Me sentia completo quanto à   minha sexualidade, mas não me sentia completo quanto ao meu gênero. Minha vontade era de gritar.

Nesse meio tempo, eu conheci a não-binaridade. Pra quem não conhece essa identidade de gênero, não-binárias são as pessoas que não se identificam com os gêneros binários construídos socialmente, o tão conhecido homem e mulher. Porém, existem outras inúmeras performances dentro dessa identidade, cada pessoa NB tem a sua vivência singular, não existe um padrão. Convido à  queles que desejam se aprofundar, a conhecerem a Teoria Queer, que propõe esse debate de forma mais incisiva.

Eu comecei a perceber que me sentia contemplado por essa identidade, pois eu não me sentia nem homem e nem mulher. Eu me sentia muito mais que isso. Eu sentia como se eu transcendesse esses dois gêneros. O que me fez entender os meus pensamentos de criança (a vontade de performar feminilidade), a minha estranheza à   associação com o gênero masculino e a minha não identificação com o gênero feminino. Era como se uma luz tivesse me mostrado a direção certa, sabe.

Foi difícil pra mim chegar a essa conclusão, eu lutei muito comigo mesmo.

Antes de entender isso, eu relutei bastante, cheguei até a rejeitar a Teoria Queer, a zombar de pessoas não-binárias, a brincar com a linguagem neutra como se isso fosse o cumulo do absurdo.

Julguei o Queer como academicista, e só depois entendi que se questões básicas de sexualidade e gênero não eram debatidas nas escolas e não eram conhecidas pela população que não tem acesso ao ambiente acadêmico, imagina questões mais complexas como a não-binaridade que mexe com uma estrutura construída e mantida firme há milênios. Gênero e sexualidade continuarão sendo um tabu até que cheguem na base da sociedade.

Achava que não-binaridade era algo fictício, que só existia na cabeça das pessoas, mas cada vez que via uma pessoa não-binária coexistindo ao meu lado ou atrás de uma tela digital compartilhando sua vivência comigo, questionava esses pensamentos.

Cada vez que eu olhava pra dentro de mim e pensava Meu Deus, o que eu sou?, questionava todos esses pensamentos. Foi muito complicado aceitar que eu poderia ser uma pessoa não-binária.

Comecei a pensar que todos ririam de mim se eu afirmasse isso, que as pessoas iriam me julgar porque passei tanto tempo me afirmando como homem, pensava que até mesmo meus melhores amigos iriam me julgar.

Pensei na possibilidade das pessoas acharem que eu estava seguindo uma modinha ou que estava me identificando como não-binárie porque gostava de usar saia e passar batom “ definitivamente, não. Identidade de gênero é o que há dentro de mim, como me identifico e não as roupas que visto ou como performo meu gênero, as duas coisas estão associadas sim, mas não se resumem a isso. Expressão de gênero é diferente de identidade de gênero.

Tudo isso e muito mais veio à   minha mente. Um turbilhão de pensamentos.

Até que eu decidi que não ia mais ficar lutando contra algo que eu sou, me anulando porque X pessoas poderiam me julgar, porque X pessoas acham que meu gênero não existe e não passa de uma modinha com o objetivo de ganhar likes nas redes sociais e pagar de pica da desconstrução. Se eu fizesse isso, só estaria repetindo algo que fiz durante meus 18 anos, só que agora com minha identidade de gênero.

Eu prefiro ser feliz comigo mesmo, me entender e saber que eu existo junto com outras milhares de pessoas, do que ficar a minha vida toda afirmando ser algo que não me sinto confortável.

A minha busca pelo autoconhecimento não para por aqui, como sempre digo, eu evoluo a cada hora, a cada novo aprendizado. Seria lindo se todos fossem assim também.

Termino esse texto desejando que todas as manas não-binárias possam ser respeitadas, aceitas e vistas como pessoas que existem.

Vivemos em um mundo tão agressivo que a cada minuto mata pessoas que não se encaixam nos padrões estabelecidos por ele. Que pelo menos a comunidade LGBT+ seja um refúgio seguro para todes.

Obrigado por ler tudinho. Um beijo no coração. ❤

E antes que me perguntem, não me importo com pronomes de tratamento, o importante mesmo é o respeito.

 

*Céu Rocha é estudante de jornalismo, tem 19 anos, é não-binário e escreve no blog Não Fale Grosso.

Jorge Gauthier
Jorge Gauthier
Jornalista, adora Beyoncé e não abre mão de uma boa fechação! mesalte@redebahahia.com.br

1 Comentário

  1. Daniel Luz disse:

    Quero muito parabenizar Céu Rocha pelo lindo texto. Acho muito importante trazer essa discussão sobre identidade de gênero para a nossa sociedade. Acredito que você é um entre muitos que passaram (ou passam) por essa situação. Mas no seu corajoso texto você apresenta palavras determinantes como: duvidas, descobertas, completar, identidade, incertezas, desejos, sonhos, construções… Enfim uma chuva de ideias que dão um norte para num momento mais a frente surgir a ACEITAÇÂO.
    Você também pontua outra coisa muito legal que é a importância de se discutir esses assuntos na universidade. Isso é fundamental porque na nossa sociedade isso não é discutido. É a universidade deve ser sempre um espaço onde possamos falar sobre essas memórias e discussões.
    Sou professor e recentemente em uma das escolas em que trabalho fiz um trabalho envolvendo arte e moda. Os alunos a partir de artistas selecionados e apresentados por mim criaram figurinos baseados em obras de arte desses artistas. Ao final do trabalho foi realizado um desfile. E um dos grupos que se apresentaram (seria um figurino masculino e um figurino feminino por grupo) resolveu que iria desfilar dois meninos um usando a roupa masculina e o outro a roupa feminina. Achei a ideia interessante e confesso que não me atentei para nenhum tipo de discussão. Concluindo. Tudo foi realizado e eis que uma das coisas que mais chamaram atenção foi exatamente um menino desfilando com roupas femininas. E até hoje eu me pergunto porque isso ainda provoca tanto?
    Não sei te responder…
    E voltando ao seu texto. No final você fala a palavra RESPEITO que deveria nortear a nossa sociedade. Que deveria ser substituída pela palavra INTOLERÂNCIA para que assim possamos de verdade num futuro entregar aos nossos jovens independentes de cor, de orientação sexual um mundo melhor.
    Sei que a luta é longa… Mas não vamos desistir.
    Parabéns querido, respeito, aceitação e felicidades sempre!

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