Desde 2010, o pesquisador Diogo Sousa, 31 anos, do Instituto de Saúde Coletiva da UFBA, tem discutido o tema das masculinidades e da saúde dos homens. Recentemente, ele concluiu estudo que discute a saúde de homens trans na cidade de Salvador. O trabalho, resultado de uma tese de dissertação há dois anos, foi apresentado na última sexta-feira (17), no Dia Internacional contra a Homofobia, no auditório do ISC/UFBA.
Sousa destaca que esse é um tema que lhe despertou interesse por ‘considerar a masculinidade uma pauta fundamental para pensar sistemas de opressões, seja o machismo, o racismo ou a LGBTfobia’. “Atualmente, discutindo saúde dos homens negros no Brasil, sei como a transfobia e o racismo articulam cenários de grande risco para os homens trans negros. Creio que tal discussão precisa considerar a identidade de gênero para uma análise profunda do tema em investigação”, afirma o pesquisador que é psicólogo e doutorando em Saúde Pública pelo Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia.
A pesquisa destaca diversas questões que envolvem o universo da transexualidade, desde a dificuldade de reconhecimento da própria identidade de gênero, até os principais dilemas dessas pessoas na busca pelos serviços de saúde na capital baiana. Confira entrevista com Diogo sobre o assunto:
—>> Nos acessos aos serviços de saúde a população trans sofre bastante preconceito. Dentro da sua pesquisa o que você identificou nesse sentido com relação aos homens trans?
A transfobia, em seu caráter multifacetado, organiza as questões de saúde dos homens trans. Ela se expressa na barreira que produz à construção de conhecimento qualificado sobre as identidades de gênero, as transmasculinidades especificamente, em como pensar o cuidado que alcance as realidades de vida dos homens trans e como pautar esse cuidado a partir de uma perspectiva que não pense as pessoas trans tomando como referência as pessoas cis. Isso não significa dividir a sociedade entre trans e cis, mas garantir que essas identidades (e tantas outras mais que sequer discutimos) tenham possibilidades de se expressar e condições para viver dignamente.
A falta de informação qualificada, de conhecimento sobre as transmasculinidades, implica tanto em barreiras para que os homens trans possam se identificar como tais, assim como tem formado profissionais que negam atendimento sob a justificativa de não terem aprendido sobre esse tema ao longo da sua formação. Houve muitos relatos sobre profissionais de saúde que utilizam desse espaço para impor a sua religiosidade, seja negando atendimento aos homens trans ou buscando realizar uma espécie de “conversão da identidade de gênero”, informando que eles deveriam voltar a ser “boas mulheres” e que havia um propósito divino para as suas vidas. Além disso, devemos lembrar da intersecção que o racismo, a homofobia, a classe e o gênero manifestam na condição de vida das pessoas trans.
Homens trans negros relataram mais negligência no atendimento em serviços de saúde em relação aos homens trans brancos. Em uma situação específica, Tom, um homem trans negro participante da pesquisa, relatou ter o seu atendimento negado enquanto um homem trans branco que estava com ele havia conseguido apresentar e ter suas demandas atendidas. Também é preciso ressaltar que a vivência de gênero precisa estar a par do que chamamos de masculinidade hegemônica, com um corpo musculoso, barba, roupas e comportamentos lidos como viris e fortes. Quando não se constroem e se comportam dessa forma, sofrem retaliações e, quando lidos como gays, sofrem homofobia. Por fim, é preciso também ter renda para suprir as necessidades de adquirir hormônios, construir o seu repertório visual com roupas e para a realização de cirurgias, caso optem, e nem todos dispõem de condições suficientes para dar conta dessas demandas.
—>> Qual o maior dificultador do acesso dos homens trans aos serviços de saúde?
Primeiro, buscar qualquer tipo de atendimento nos serviços de saúde perpassa uma série de sensações de ansiedade e medo. Os homens trans relataram ficar ansiosos, incomodados e apreensivos com a possibilidade de sofrerem violências nos serviços de saúde. Em especial, quando precisam fazer algum tipo de consulta clínica do aparelho genital, vão acompanhados por amigas, namoradas ou familiares. Isso porque, quando um homem trans é chamado pelo nome de registro, é a pessoa que lhe acompanha que segue com ele, como se ele fosse um acompanhante.
No consultório, ambos explicam a situação e esperam não sofrerem retaliações da/o profissional. Nesse sentido, considerando aqueles que já realizaram a retificação documental, é preciso que a gente amplie informações sobre as transmasculinidades para que tanto a população quanto a equipe profissional de um serviço reconheçam os homens trans em suas demandas de serem assistidos nesses locais. Este é um exemplo e, quando falamos sobre ele, estamos falando sobre violência contra as pessoas trans, ou seja, transfobia. A transfobia tem muitas formas de se manifestar. Creio que uma das mais violentas seja a negação da existência de uma pessoa.
Isto acontece com pessoas negras, mulheres e LGBT de modo geral. Buscar um serviço e ter suas necessidades ou demandas de saúde negligenciadas por desconhecimento ou falta de formação, justificativas comuns entre profissionais de saúde, em especial, da medicina e psicologia, não diz necessariamente da falta de qualificação profissional, mas da negativa de usar o seu conhecimento e transformá-lo para alcançar a realidade da vida dos homens trans. Creio que a psicologia nos ajuda refletir algo muito básico para o que fazer quando não se sabe: ouvir a pessoa e sua demanda. Construir, juntas, um modo de pensar como construir estratégias de cuidado que permitam o seu bem-estar.
—>> Acredita que faltam políticas públicas em saúde para auxiliar homens trans nos momentos, por exemplo, de reconhecimento da identidade de gênero?
Acredito que falta a ampliação das políticas de saúde, de mudanças culturais, políticas e sociais que façam com o que o SUS esteja forte o suficiente para cumprir o seu compromisso com a população, em especial, de torná-la protagonista na construção das lógicas de cuidado e garantir que nenhuma pessoa trans tenha o seu direito à saúde aviltado em qualquer canto desse país. Precisamos trazer para dentro da compreensão de saúde os saberes produzidos por intelectuais e ativistas trans e construir com estes grupos as estratégias de cuidado necessárias de serem implementadas.
Então, é preciso ler Viviane Vergueiro, Jaqueline Gomes de Jesus, Céu Cavalcanti, Guilherme Almeida, Fran Demétrio, dentre outras/os, para ampliar a noção de cuidado e assistência à população trans. Além disso, as questões trans não são exclusivas do setor saúde e demandam cuidados intersetoriais. Como dito anteriormente, a transfobia organiza as questões de saúde da população trans. Ela não é exclusivamente uma questão de saúde, portanto, demanda que esta junto à assistência social, à educação e ao sistema de justiça caminhem juntos para a construção de políticas antitransfóbicas. Deste modo, podemos considerar o reconhecimento da identidade de gênero e o cuidado transversal às pessoas trans.
—>> A legislação é bastante restritiva com relação aos processos de uso de hormônios o que acaba levando as pessoas para usos não autorizados. Qual impacto isso tem na saúde dos homens trans?
Atualmente, o hormônio utilizado por homens trans, a testosterona, é um medicamento controlado, que necessita de guia médica para a sua obtenção em farmácias. Além da necessidade de recurso financeiro para alcançar essa medicação, a barreira mais apresentada pelos homens trans foi a recusa médica no fornecimento da guia médica e de assistência nesse processo. O efeito dessa prática não é evitar que os homens trans se hormonizem, mas que o façam de forma arriscada. Primeiro, porque, como não conseguem obter os hormônios nas farmácias, buscam em outros locais, geralmente, academias.
Por vezes, adquirem substâncias vindas de outros países que não passaram pelo controle da Vigilância Sanitária, e que podem trazer sérios riscos à sua saúde. Quando conseguem articular formas de conseguir o medicamento nas farmácias, o trânsito do medicamento até chegar em suas mãos oscila o valor em até quatro vezes mais. Muitas vezes, isso dificulta a periodicidade com que a aplicação deve ser feita, não alcançando os resultados desejados. Vale destacar que o Brasil ainda não possui uma normativa de hormonização específica para a população trans, situação comumente utilizada para negar tal demanda à população. A literatura internacional indica que a hormonioterapia é segura a curto prazo e garante os efeitos desejados, mas é preciso compor um plano terapêutico seguro com a pessoa demandante.
—>> Quais resultados da sua pesquisa você acredita que são mais importantes de destacar?
A transfobia em sua dimensão interseccional é um dos principais achados. Ela não se exerce só, mas é uma dimensão estrutural que se organiza com o racismo, o sexismo e a homolesbobifobia. Isso significa que a estrutura da transfobia demanda de outras estruturas de dominação, bem como não é somente ela que organiza a vida dos homens trans, sendo que cada outro marcador que opera vulnerabilidades intensifica sofrimentos e questões de saúde. No artigo intitulado “‘Viver dignamente’: necessidades e demandas de saúde de homens trans em Salvador, Bahia, Brasil”, destaco que a transfobia é uma faceta da antidemocracia, pois opera a exclusão de um grupo populacional.
Além disso, as questões de saúde mais presentes nas falas dos homens trans (hormonização e cirurgias) não são demandas solicitadas por todos e existem pressões de diversas ordens que acabam por produzir sofrimentos. Creio que ter ouvido os homens trans enquanto pesquisador confirmou a importância da escuta e da valorização do saber como forma de construir cuidados efetivos à sua saúde. Sem que sejam protagonistas do seu processo de cuidado, as estratégias propostas que não alcançam suas necessidades e demandas, além de poderem operar violências.