“Minha alegria se foi. Ela era meu sol e todos os dias saímos para caminhar juntos pela rua e fazer a atividade física. Não respeitaram nosso amor e tiraram ela de mim”. O lamento triste de um comerciante de Salvador, de 45 anos, exacerba a dor de quem perdeu a pessoa amada. Sua esposa, que ele prefere que não tenha o nome divulgado assim como o dele, integra uma triste estatística: ela foi uma das 144 pessoas transexuais e travestis mortas no Brasil em 2016 – um aumento de 22% em relação a 2015.
A despedida dele e sua amada aconteceu em uma cidade do interior da Bahia. Minutos depois recebeu a notícia que ela havia sido assassinada. O motivo: preconceito. “Recebíamos muitos insultos por estarmos juntos, mas eu sempre segurava a onda. Ela também, mas dessa vez não teve jeito. Ela não reagiu e mesmo assim foi morta com crueldade. Na rua me contaram que eles gritavam antes de atirar que ela era um monstro, mas ela era o meu amor”, relembra o comerciante que saiu da cidade do interior e veio morar em Salvador. Em todo estado da Bahia, ano passado, 9 pessoas travestis e transexuais foram mortas.
Segundo o antropólogo Luiz Mott, responsável pelo site Quem a homofobia matou hoje – desenvolvido pelo Grupo Gay da Bahia (GGB) e que é usado internacionalmente como instrumento de notificações de casos de LGBTfobia, proporcionalmente, as travestis e transexuais são as mais vitimizadas. O risco de uma pessoa trans ou travesti ser assassinada é 14 vezes maior do que um gay, e se compararmos com os Estados Unidos, as 144 travestis brasileiras assassinadas em 2016 face à s 21 trans americanas, as brasileiras têm 9 vezes mais chance de morte violenta do que as trans norte-americanas. Segundo agências internacionais, a exemplo da Trans Respect Versus Transphobia World Wide , mais da metade dos homicídios de transexuais do mundo ocorrem no Brasil.
A mãe de uma travesti morta na Bahia no ano passado, que também pediu anonimato, relembra que todas as vezes que a filha ia para a rua temia receber a notícia da sua morte. Por muito tempo ela trabalhou com prostituição, mas resolveu fazer um curso e estava estudando para trabalhar com coisas de beleza. Quando ela trabalhava na rua sempre passava por problema de violência.Foi espancada várias vezes. Mas o que me dói é que ela foi morta depois de muito tempo que não ia mais pra prostituição por uma pessoa que tinha ficado com raiva dela. Eu rezava todos os dias pedindo para ela voltar pra casa, mas lá no fundo sabia que um dia eu ia ter que enterrar minha filha.Ser diferente é crime nesse país, conta a aposentada, que anda sempre com uma foto da filha na bolsa. Gosto de lembrar dela sorrindo.
De acordo com o antropólogo Mott, que pesquisa a incidência de mortes de LGBTs desde 1970, as perspectivas são as piores. Esse ano novo começa ainda mais homofóbico: em janeiro de 2017 já foram documentados 23 assassinatos de LGBT em 22 dias, mais de um assassinato por dia.
Vulnerabilidade
Para o coordenador da comissão de diversidade sexual da Ordem dos Advogados do Brasil – Seção do Estado da Bahia, Filipe Garbelotto, as travestis e pessoas transexuais são as mais vulneráveis aos crime de ódio. Há um preconceito maior contra elas que acabam ficando expostas à discriminação desde muito cedo. Buscamos fazer a desconstrução de preconceitos junto à s famílias e escolas, com rodas de conversas e palestras para colaborar com as mudanças, indica.
Márcia Teixeira, Coordenadora do Centro de Apoio Operacional dos Direitos Humanos – CAODH – do Ministério Público da Bahia (MP BA), o crescente número de mortes de LGBTs, em especial das pessoas transexuais e travestis, sinaliza que a violência como um todo está em um crescente. As políticas públicas não têm levado a sério a questão da LGBTfobia. Os diversos movimentos LGBTs que têm serviços voltados para essa temática vem sinalizando a necessidade de intervenções dessas políticas na educação, sistema de justiça, inclusive em questões como retificação do nome social em documentos, destaca.
A Secretaria da Segurança Pública da Bahia, através da Superintendência de Prevenção à Violência, informou, em nota, que está em processo de implantação do Núcleo de Atendimento Qualificado à s Vítimas de Preconceito Racial, Intolerância Religiosa e da População LGBT, que funcionará no âmbito da Polícia Civil, reforçando o suporte a estes públicos desde o primeiro atendimento na delegacia até o acolhimento na rede de apoio constituída por diversos órgãos estaduais.
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Além da análise no melhor local para abrigar o núcleo, também são aguardadas a chegada das viaturas adquiridas recentemente pela Polícia Civil, assim como a posse de novos delegados, escrivães e investigadores que vão compor o quadro da unidade. Com a centralização das ocorrências no núcleo, a SSP espera atender de forma mais adequada e acolhedora as vítimas e fortalecer o combate e a prevenção a este tipo de crime, afirmou a SSP indicando que ainda não há prazo para que o novo setor funcione.