Por Wendel de Novais
“Estava no ônibus, perto de saltar. Um cara me olhou de cima a baixo e disse: ‘nem sei se isso é homem ou mulher’. Ele tentou me empurrar e eu revidei. Foi aí que ele me deu um soco e me jogou com toda a força para fora, quando a porta abriu. Fiquei toda machucada”, lembra Juliana Botelho, 26 anos, que sofreu a agressão em Salvador, quando voltava do trabalho.
O ataque motivado por preconceito e que poderia ter resultado na morte de Juliana, na Bahia, infelizmente, não provoca surpresa. Isso porque, de acordo com dados do Grupo Gay da Bahia (GGB), o estado é o que mais acumulou mortes violentas de pessoas LGBTQIA+ em 2022. Ao todo, foram 27 casos, o que representa 10,5% dos casos notificados no país no ano passado. Ou seja, por aqui, cada mês registra uma média de mais de duas mortes por lgbtfobia.
Os números da Bahia superam estados com um quantitativo populacional três vezes maior, como São Paulo, que teve 25 mortes e fica em segundo lugar no indesejado ranking. Pernambuco, com 20 mortes violentas, fica em terceiro e é seguido por Minas Gerais, que fechou o ano passado com 18 crimes. Maranhão e Pará tiveram15 registros, cada.
“Não é a primeira vez que a Bahia ocupa esse lugar em relação aos outros estados. Em vários outros anos na última década, a Bahia estava em primeiro ou segundo lugar. No entanto, não há razão sociológica clara que permita dizer os motivos dos números mais elevados”, pontua Luiz Mott, professor aposentado de Antropologia na Ufba e fundador do GGB.
Ao comentar as estatísticas locais, porém, Kleber Simões, historiador e pesquisador de temas LGBTQIA+, afirma que os índices baianos são tão altos por falta de políticas públicas que, de fato, reduzam a violência contra essa população, principalmente quando a motivação é o preconceito [homofobia, lesbofobia, transfobia].
“Ao longo dos anos, os governos negligenciaram a pauta LGBT+, com suas demandas e questões. Inclusive, a construção de políticas públicas voltadas à preservação da vida desta população, o que aumenta e deixa persistente a vulnerabilidade das pessoas LGBTs”, aponta.
Ainda de acordo com Kleber, o que se vê na política é que as demandas dessa população são negociadas dentro da pauta pública. “Ao mesmo tempo que você não tem uma política sistemática que envolva a produção de órgãos específicos para a denúncia, coleta de dados e de punição dessa violência fatal, não se tem resposta a outros tipos de violência como a patrimonial, a moral e a sexual”, enumera.
O pesquisador acrescenta, ainda, que os números se ampliam porque não há um órgão específico para tratar da questão. Procurada para responder sobre isso, a Secretaria de Segurança Pública do Estado da Bahia (SSP-BA) não respondeu sobre o assunto e nem deu detalhes de políticas de segurança voltadas à população LGBT+ do estado.
Convivência com o medo
Em números relativos, a Bahia também tem índices elevados de violência fatal contra pessoas LGBTQIA+. Enquanto a média de mortes dessa população no país é de 0,13 a cada 100 mil habitantes, o estado registra 0,18. Esses dados, por sua vez, se traduzem nas ruas e fazem com que as pessoas que são alvo dessa violência vivam com medo e, em muitos casos, evitem demonstrações de afeto em público.
“Ninguém fez nada quando ele me agrediu, ninguém parou para me ajudar. O motorista, que me viu pelo retrovisor, só fechou a porta e seguiu viagem. A gente vive acuada e com medo. Não pode nem responder uma ofensa para não apanhar, como aconteceu comigo”, reclama Juliana, que prestou queixa da agressão em setembro do ano passado. Na época, ela também denunciou o caso pelas suas redes sociais. Veja o vídeo.
Mesmo quem não sofreu uma violência física partilha do temor. Emerson Santana, 32, diz que não se preocupa em andar na rua sozinho, mas a coisa muda de figura quando está acompanhado. Ele afirma que os olhares intimidam e sente que, a qualquer momento, pode sofrer agressão verbal ou mesmo física por causa de uma demonstração de carinho.
“Tenho receio de demonstrar afeto nas ruas. Salvador, que é tida como uma cidade grande e mais aberta, tem muita homofobia e eu tinha medo de demonstrar algo quando estava namorando. No interior, é pior ainda. Não ando de mãos dadas e procuro ter cautela em saber onde é seguro mostrar afeto”, conta Emerson, que é de Itapetinga, no sudoeste da Bahia.
Letícia Paz, 21, também escolhe com cautela os locais para onde ir com a namorada. Ela afirma que, por ter ciência de casos em que pessoas foram vítimas de ataques violentos por conta da orientação sexual, o medo é presença comum quando andam em espaços públicos.
“Sempre fico com medo antes de sair de casa. Por isso, tentando não sofrer lesbofobia, seleciono bem o lugar. Até porque mesmo um olhar é carregado de violência. Muda nosso comportamento e chegamos até a soltar as mãos. Tudo isso por um medo que existe por conta dos inúmeros relatos de violência contra pessoas LGBTs”, diz.
Subnotificação
Ainda que os números da violência contra a população LGBT+ sejam altos, eles podem também estar subnotificados. Isso porque o Grupo Gay da Bahia faz o trabalho de coleta dos dados sobre os crimes e as vítimas através do que é noticiado na imprensa e não tem acesso, por exemplo, aos registros das delegacias, que poderiam indicar com mais exatidão o número de mortes violentas de pessoas LGBTQIA+ no estado.
O pesquisador Kleber Simões acrescenta que é possível existir uma subnotificação ainda maior nos outros estados. “Por ser da Bahia e ter sido idealizada pelo GGB [a estatística anual sobre violência contra lgbts], há uma possibilidade de que eles tenham mais capacidade de captar dados relativos à violência contra essa população”, afirma.
“E a mídia também pode influenciar, já que serve de base para a coleta. O nível de atenção que se dá ao tema em um estado pode ser diferente do outro”, complementa ele, que também é professor da Uneb.
Advogado civil, Joaquim Magalhães explica que os crimes contra pessoas LGBT+ se tratam de “crimes cometidos contra um determinado grupo social em razão de sua etnia, nacionalidade, religião ou orientação sexual”. Ou seja, são enquadrados como crimes de ódio.
Joaquim Magalhães lembra que a homofobia foi reconhecida como crime equiparado ao racismo pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2019, o que fez desses crimes, delitos inafiançáveis e imprescritíveis. “A dificuldade, contudo, é na própria classificação do crime. Posto que, muitas das vezes, se acaba omitindo ou não se reconhecendo que a causa do crime foi a orientação sexual [ou a identidade de gênero] da vítima”, complementa o advogado, acenando para mais um motivo que induz à subnotificação.