Por Jorge Gauthier
(@jorgegauthier / @me_salte)
Jô Magalhães tem 34 anos, estuda Medicina e está no processo de transição de gênero para o feminino. Na última sexta-feira (11) sua matrícula no curso de Medicina na Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) foi cancelada por suspeita de fraude no uso de cotas para pessoas transexuais, segundo parecer do Conselho Universitário.
Em conversa com o Me Salte, nesta segunda-feira (14), Jô ou Joana, como também se identifica, questionou a postura da instituição, que não houve transparência no processo nem Justiça na decisão de cancelar a matrícula. “Não respeitaram minha identidade de gênero. Decidiram a qualquer custo que iriam me tirar de lá. A UFSB me destrói, mas isso tudo só serviu para me libertar das amarras da sociedade machista e transfóbica. Eles definiram que eu seria um ‘judas para dar exemplo’, mas não se preocuparam com o lado humano. Em nenhum momento do processo a UFSB deixou claro que bases usaram para definir minha transgeneridade ou não. Foi um processo injusto”, destacou Joana.
Em um dos relatórios eles a universidade diz que eu sou trans mas que não tenho direito à vaga porque eu não sofri opressões. Como eles podem dizer isso? Eu já fui estuprada, já fui expulsa de casa, vivo no meio de uma família transfóbica. Isso é não sofrer opressão? A universidade fez um julgamento político e não respeitou minha identidade de gênero. Eles me mataram simbolicamente.
A estudante relata que já integrou o Conselho Universitário e que sempre questionou o sistema de acesso. “Na UFSB o modelo de ensino é diferente. Você faz 3 anos de um bacharelado interdisciplinar em saúde e depois só os 80 melhores vão para Medicina. Eu entrei nesse bacharelado, fiz em 4 anos por causa do trabalho.
“Todos sabem que sempre fui contra o modelo da UFSB e expus isso de várias formas, nunca consegui compreender a inclusão que a UFSB pregava já que obviamente o modelo era excludente, estimulava a competição e destruía os planos de quem não conseguisse ser bom o bastante pra conseguir chegar aos seus sonhos. Essa falsa inclusão nunca me enganou, e eu paguei um preço alto por discordar deste CIStema, Me tornei um ser detestável por falar o que pensava, e em vários momento eu me sentia um mal necessário.Hoje vejo que de certo modo eu sempre estive certa, nós discentes nunca fomos a prioridade desta instituição”, desabafou.
Em conversa com o Me Salte, Jô destacou que o edital de acesso à vaga indica que pode concorrer qualquer pessoa travesti, transexual ou transgênero. Nã há especificação de em qual momento ou fase da transição a pessoa deve estar.
“Entrei na UFSB em 2014 . Achei que lá o ‘personagem JP’ seria bem utilizado’. Eu fazia questão de me impor, se eu era reprimida pelo mundo eu ia fazer o mesmo lá. E assim foi, até tentei namorar uma menina, mas ela descobriu que a trai com um menino no carnaval. Confesso que apesar de não acreditar na UFSB como instituição ela me desconstruiu muito, seja pelos amigos que mostraram que eu não precisava ser o que eu era, que eu poderia ser livre. Pelas aulas filosóficas e pelos professores que enxergavam em mim além de um babaca, eu fui mesmo muito tóxica, eu amava o poder, porque pra mim o poder me daria respeito, que nada, sai de lá foi desmoralizada e cheia de inimigos, mas também fiz por onde”, explicou Jô, que também se identifica com JP.
A inscrição no edital para cota trans foi em 2016. “Não foi planejado para fraudar nem para nada, mas foi planejado sim para eu me livrar de toda máscara e fantasia que eu usava, foi o primeiro dia que sai de casa sem a fantasia que levei por tanto tempo, era a ressurreição da Joana Largon. Mas claro, nada seria fácil pra mim, eu não tinha o padrão (se é que existe padrão) para ser uma trans, e me denunciaram por fraude no processo. Sinceramente, nem culpo quem denunciou, afinal é um direito e as coisas precisam ser esclarecidas (acho essa palavra meio racista). Foi aí que começou a saga da minha determinação de gênero na UFSB”, ressalta.
Jô explica que foi feita uma comissão com professores, que segundo ela são pessoas LGBTQIA+, que tiveram a função de fazer um relatório afirmando ‘se eu era o não trans segundo a concepção deles, visto que eram autoridades com poder para definir a identidade de gênero de uma pessoa. Mesmo os 3 sendo da psicologia e o Conselho Federal de Psicologia dizendo que nenhum profissional psicólogo pode interferir na autodeterminação de uma pessoas’.
A estudante afirma que o relatório da comissão não foi feito da forma correta e que houve fraude na condução do mesmo.
“Em momento nenhum o relatório diz que não sou trans e tão pouco fala sobre o que deveria ser feito com meu caso. Não conheceram a minha casa, não conversaram com meus amigos, não procuraram meu familiares, nada. Apenas disseram o que quiseram e pronto. Simples assim. Foi votada a minha expulsão com o relatório da forma que estava, completamente vazio. E pior, eles vazaram o documento da minha expulsão e se quer me disseram como deveria ser o processo para recorrer. Eu soube que tinha sido expulsa por terceiros, quando virei chacota nos grupos, fui exposta, fui humilhada, até ameaçada por uma travesti da UFSB eu fui, que disse que eu ia levar uma surras das travestis de Teixeira [de Freitas] que eu ia ser trans mas espancada”, explicou Jô que recorreu dessa decisão primária, mas acabou tendo a matrícula cancelada no último recurso na instituição.
Assumir minha trangeneridade foi muito mais que uma vaga para medicina, fói um grito de liberdade, foi ressuscitar quem eu sempre fui, foi mesmo que de forma comedida, poder usar as roupas que sempre quis, ser chamada como gosto, ter o direito de pintar minhas unhas, de usar batom e estar nem aí porque me sinto segura. Quando a UFSB determina que minha identidade de gênero não é minha e subjetiva e é ela quem o define, ela me mata, mata minha liberdade, mata minha alma. E hoje não estou disposta a voltar atrás e matar mais um vez a joana como fiz no passado, se alguém tiver que morrer que morra a carne não só a alma.
Em documentos oficiais enviados ao Me Salte pela estudante há o uso do nome social e também do nome do registro civil. Por esse motivo não vamos divulgá-los na íntegra.
Em nota, a Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) informou que fez o cancelamento da matrícula da estudante por ‘ocupação indevida de vaga destinada à pessoas trans’. Confira a nota da UFSB na íntegra:
A Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), a respeito do caso em tela, informa que: i) após corridas todas as etapas do processo originado por denúncia de ocupação indevida de vaga supranumerária destinada à pessoas Trans egressas de escola pública, por meio da Ouvidoria da instituição; ii) tendo garantido todos os prazos recursais e o amplo direito de defesa à estudante nas instâncias asseguradas pela legislação e pelo Comitê de Acompanhamento de Políticas de Cotas (CAPC), indicadas na Resolução Consuni 26/2019; iii) o Conselho Universitário, em reunião extraordinária realizada na última sexta-feira (11) pela manhã para análise do recurso impetrado em segunda e última instância, deliberou pela manutenção do cancelamento da matrícula da estudante.
Em vídeo publicado nas redes sociais Jô falou mais sobre o assunto. Jô seguirá com o caso na Justiça em busca do reingresso no curso.