Por Washington Luan Gonçalves de Oliveira, especial para o Me Salte*
A cisheteronormatividade estrutural existente no Brasil afeta significativamente a saúde mental da população LGBTI. A essa população é enviado o discurso de ódio e desvalor a partir de diversos núcleos que afirmam que pessoas LGBTIs não são capazes de construir e manter famílias. Essa visão tem origem no perfil familiar nuclear e monogâmico, que é sistematizado a partir da união entre pessoas/casais heterossexuais. Tudo que destoa dessa “norma” segue sofrendo preconceitos.
Esses núcleos afirmam que as configurações que aqui chamarei de “família tradicional” são o único modelo a ser seguido, em uma lógica apontada como reprodutiva. Vale destacar que no nosso modelo colonizador essa família nunca existiu, sendo que os portugueses e senhores tinham as populações colonizadas (negras e indígenas) como propriedades.
Nessa lógica de tutela/propriedade sobre esses corpos, a escravidão também se sustentava pela modo de violência sexual, que possui efeitos psicológicos até os dias atuais com reprodução de normas sobre gênero, raça e sexualidades.
Com a discussão e efetivação de direitos legais conquistados pela comunidade LGBTI (união estável, adoção, casamento civil, etc), são conquistados alguns avanços, como o de construir novas configurações familiares. E com esses direitos volta à tona a discussão do que é família, fruto de um comparativo acerca do modelo família tradicional que nunca existiu.
Todo homem assumidamente gay já ouviu de familiares e pessoas próximas a reprodução do discurso de que, por ele ser gay, não poderá ser pai. Contudo, esses modelos estão sendo ampliados a partir do próprio olhar das pessoas LGBTIs, que formam novos arranjos familiares e diversas formas de reprodução/adoção.
Casais formados por pessoas trans tem gerado um desconforto social acerca dos perfis de parentalidade e conjugalidade. Cabe a discussão que, segundo a Organização das Nações Unidas, mais de 150 milhões de crianças vivem em situação de rua no mundo e em extrema pobreza. No que diz respeito às crianças e adolescentes institucionalizadas/os, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) nos traz que, no Brasil, 47 mil crianças e adolescentes vivem em abrigos.
O mesmo conselho aponta que 5,5 milhões de crianças não possuem o nome do pai no registro de nascimento, sendo que essas mães configuram famílias monoparentais (onde, mais uma vez, isso é diferente da família tradicional). Criamos socialmente uma norma adoecedora que não pode ser seguida pelas próprias pessoas que a criam e alimentam.
Enquanto isso acontece de forma desastrosa no nosso país, pessoas vivem a proliferar discursos de ódio e negativos à população LGBTI que formam novas famílias, adotam ou passam por processos de reprodução tradicionais ou assistidas. Isso é reflexo da cisheteronormatividade, e cabe à Psicologia, enquanto ciência e profissão, lutar contra toda e qualquer forma de opressão.
Nos princípios fundamentais do Código de Ética Profissional da/o Psicóloga/o, temos que “a/o psicóloga/o trabalhará visando promover a saúde e a qualidade de vida das pessoas e das coletividades e contribuirá para a eliminação de quaisquer formas de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”. Não cabe à Psicologia, portanto, se omitir diante de situações discriminatórias que gerem crueldades singulares ou coletivas.
As pessoas LGBTIs diariamente seguem politizando as feridas que são cravadas nas suas subjetividades, fruto da LGBTIfobia estrutural. Ser LGBTI não é ser doente, mas estar em uma sociedade LGBTIfóbica como a nossa é altamente adoecedor, isso pelo motivo de ser normatizada pelo modelo heteronormativo balizador que deseja controlar corpos que não são seus.
Essas violências são destinadas também às configurações familiares construídas a partir de filhos trazidos de outros relacionamentos anteriores, de adoção e de outras maneiras reprodutivas.
Vale destacar que existem estudos científicos nos quais demonstram inexistência de relação entre a orientação sexual e identidade de gênero dos pais e das mães com a das/os filhas/os, e nem diferenças no desenvolvimento de crianças criadas por pais e mães homossexuais e/ou heterossexuais.
Acho importante frisar que filhos LGBTIs foram criados por pais heterossexuais que reproduziram a cisheteronormalidade como modelo, mesmo assim, são as/os filhas/os são pessoas LGBTIs.
O que um homem ou mulher trans traz de ameaça ao seu modelo de cisheterossexualidade? A família hoje é diversa, a vida é diversa e requer representações diversas dos modelos de parentalidade e conjugalidade inclusive nas mídias.
Cobranças sociais como essas fazem a população LGBTI terem altas taxas de ansiedade, depressão e até mesmo suicídio a partir do que a sociedade direciona como modelo e julgamento. O medo, o preconceito, as violências geram esses gatilhos de alerta, nos quais estudos como o da Universidade Federal de Minas Gerais (2020) nos trazem que pessoas LGBTIs possuem mais que o dobro de chances de terem problemas ligadas à depressão, ansiedade ou suicídio. Reforço que não é por ser LGBTI, mas por conviverem em uma sociedade LGBTIfóbica.
A importância de famílias/casais LGBTIs estarem na mídia e em propagandas se dá pela reparação histórica de todo negativo destinado a esses modelos de afetos. O que define uma família é o amor e a convivência fraterna. O que define a identidade de gênero de alguém não é sexo biológico designado ao nascimento. Gênero é uma construção social embasada por padrões do que é masculino e/ou feminino.
O Conselho Federal de Psicologia possui a resolução 01/2018 que estabelece diretrizes a partir de uma legislação federal que traz o termo expressões de gênero, utilizado para representar a forma como cada sujeito apresenta-se a partir do que a cultura estabelece como sendo da ordem do feminino, do masculino ou de outros gêneros, vale destacar que “as psicólogas e os psicólogos, no exercício profissional, não serão coniventes e nem se omitirão perante a discriminação de pessoas transexuais e travestis”.
O mito existente na sociedade é o de que, caso se fale/oriente pessoas LGBTIs, elas vão deixar de serem elas mesmas; e se crianças e adolescentes que vêem pessoas LGBTIs acabam tornando-se por influência. Pessoas LGBTIs não deixarão de ser LGBTIs, pois não há cura para o que não é doença, não há correção para o que não é desvio. Agora o preconceito possui cura, atualize-se, reflita o quanto sua LGBTIfobia contribui para essas violências e saiba reconhecer a necessidade de mudança de comportamento/sentimento em relação às pessoas LGBTIs. Se você é LGBTI, orgulhe-se. Por ser você, por ser LGBTI.
*Washington Luan Gonçalves de Oliveira é psicólogo (CRP-03/18055), conselheiro no Conselho Regional de Psicologia da Bahia (CRP-03) e no Conselho Municipal de Direitos Humanos de Salvador, coordena a Comissão de Direitos Humanos no CRP-03 e é mestrando no Programa de Mestrado Profissional em Saúde de População Negra e Indígena da UFRB.