Por Larissa Freitas*
No dia 09 de Janeiro de 2020, foi publicada no Diário Oficial da União, a Resolução nº 2.265 de 20 de Setembro de 2019 do Conselho Federal de Medicina (CFM), que diz respeito ao cuidado da pessoa com Incongruência de Gênero (IG) e revoga a Resolução nº 1955/2010.
A nova resolução traz importantes avanços na assistência à população transgênero, visando alcançar a atenção integral à saúde, um direito de todo cidadão brasileiro, mas ainda negado a estes indivíduos em muitos aspectos.
Os principais pontos abordados no novo documento são relativos à terapia hormonal e às cirurgias de afirmação de gênero; para ambos, a idade mínima necessária para a realização dos procedimentos foi reduzida.
Agora, está autorizada pelo CFM, a realização, nos indivíduos com IG, de hormonioterapia cruzada a partir dos 16 anos de idade e de procedimentos cirúrgicos a partir dos 18 – anteriormente as idades mínimas eram de 18 e 21 anos respectivamente; estes mesmos critérios já são adotados em muitos estados norte-americanos há alguns anos.
Essa medida tem como objetivo evitar a exposição destes indivíduos a procedimentos de transição inadequados e arriscados para a saúde (uso excessivo de hormônios, injeção de silicone industrial para modelar o corpo, etc), na tentativa de reduzir o desconforto trazido pela sua conformação corporal incongruente com o gênero experienciado por eles.
Apesar destes avanços, a nova resolução ainda mantém o bloqueio hormonal puberal e a cirurgia de neofaloplastia (confecção de pênis em homens transexuais) como procedimentos que podem ser realizados apenas em caráter experimental, nos hospitais de referência credenciados ao SUS e seguindo protocolos de pesquisa submetidos às normas do CEP/Conep.
Outro ponto interessante abordado na Resolução 2.265/19 é o Projeto Terapêutico Singular (PTS), que é definido como um “conjunto de propostas de condutas terapêuticas articuladas, resultado da discussão de uma equipe multiprofissional e interdisciplinar com o indivíduo, abrangendo toda a rede assistencial na qual está inserido e contemplando suas demandas e necessidades independentemente da idade”.
Através da proposta da elaboração do PTS, a resolução dá um importante passo no combate a estigmatização da população transgênero e na ampliação do seu acesso à saúde, reconhecendo a singularidade de cada indivíduo e por isso suas diferentes demandas, e estabelecendo que o cuidado com esta população não pode se dar de maneira engessada.
O documento também especifica e aumenta o número de especialistas que devem compor a equipe multidisciplinar, sendo eles: psiquiatra, endocrinologista, ginecologista, urologista, cirurgião plástico e pediatra – este último apenas quando houver abordagem a menor de 18 anos.
Outros profissionais poderão ampliar a composição da equipe de acordo com as demandas identificadas no PTS. O Brasil possui vários centros habilitados a realizar a hormonioterapia pelo Sistema Único de Saúde, mas apenas 5 hospitais credenciados para a realização das cirurgias de afirmação de gênero, um número ainda pequeno diante da demanda existente.
As mudanças divulgadas pelo CFM não são automaticamente incorporadas pelo SUS; as modificações no sistema público ocorrerão mediante análise da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias do SUS e discussão com diversos órgãos, segundo informações do Ministério da Saúde.
Com isso, ainda haverá algum tempo de espera para que os avanços obtidos no papel se convertam numa melhora real da assistência pública à saúde desta população, que já acumula décadas de esquecimento por parte do poder público e marginalização social.
Por fim, a resolução é muito feliz quando reforça que “a atenção integral à saúde do transgênero deve contemplar todas as suas necessidades, garantindo o acesso, sem qualquer tipo de discriminação, às atenções básica, especializada e de urgência e emergência”, reconhecendo que o indivíduo transgênero possui necessidades de saúde como qualquer outro cidadão e deve ser respeitado, acolhido e devidamente orientado quaisquer que seja a sua demanda e quem qualquer lugar que procure atendimento.
Ainda há muito o que avançar na integralidade da assistência à saúde da população transgênero no Brasil, mas sem dúvida a resolução 2.265/2019 do CFM constitui-se num passo importante em direção a este objetivo.
*Larissa Freitas é psiquiatra e compõe a equipe do Ambulatório Transexualizador do Hospital Universitário Professor Edgard Santos (HUPES) e da Plural – clínica privada multidisciplinar especializada na assistência à população LGBTQIA+. Contato: larissafreitas027@gmail.com