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[artigo] Em meio às transfobias nossas de cada dia, o que dizer da Escolinha Maria Felipa?

A Escolinha Maria Felipa, de Salvador, publicou nas redes sociais o trecho de uma conversa entre a instituição de ensino e outra pessoa não identificada. No diálogo, a Escolinha Maria Felipa é questionada sobre ter um  homem trans professor e a resposta repercutiu nas redes sociais. “Vocês têm um professor trans na escola, né?”, pergunta a pessoa Após a confirmação da escola, dizendo que o educador é um “excelente profissional”, o interlocutor segue com outra pergunta. “Não que eu concorde, mas você não acha que isso pode ter diminuído o número de matrículas de vocês?”, pergunta.

A resposta da escola, depois de publicada nas redes sociais, chamou atenção: “Quem acha que uma pessoa trans, apenas por ser trans, não pode educar seu filho não merece a nossa escola”. O professor trans contratado pela escola é Bruno Santana, primeira pessoa trans formada em Educação Física pela Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs). Ele também é segundo homem trans a assessorar um parlamentar da Câmara Municipal de Salvador nos 470 anos de fundação da casa.

Bruno é ativista e membro do Coletivo de Transs pra Frente e da Transbatukada. Professor, licenciado em Educação Física pela UEFS, ele é pesquisador na área de Educação, Gênero, Raça , Direitos humanos e Transmasculinidades. A pedido do Me Salte, Bruno Santana faltou sobre a repercussão do caso – que viralizou internacionalmente -, transgenereidade, educação e combate ao preconceito:

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É importante dizer que a educação TransFormadora jamais se venderá ao capital. Jamais venderemos nossos sonhos!!! Jamais desistiremos do projeto de sociedade que acreditamos!!! A Pedagogia que não inclui todas as pessoas jamais será Educativa. Eu tinha plena certeza que a escola seria assertiva na resposta.  O projeto de sociedade que a Maria Felipa defende jamais permitiria qualquer tipo de opressão. Tenho muito orgulho de fazer parte dessa família.

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Eu nem perguntei o nome da pessoa que fez esse comentário transfóbico. Não é culpabilizando o sujeito que reproduz a opressão que irei combatê-la. É preciso destruir as estruturas desse Cis-tema LGBTfóbico responsável por todo extermínio e violência contra população LGBTQI +. E isso só será possível através da Educação. E assim tenho feito!

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A transgeneridade nunca será um problema para as crianças. As pessoas adultas que perdem tempo disseminando preconceitos. As crianças não estão preocupadas se seu professor é um homem trans. Elas são inteligentes e entendem que a identidade de gênero é apenas mais uma possibilidade de ser e estar no mundo. O mais importante nesse processo de ensino- aprendizagem é possibilitar que elas vivenciem experiências pedagógicas que garantam o seu desenvolvimento humano. Que sigam sendo pessoas comprometidas na construção de um mundo que inclua todas as pessoas.

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Dou aula de capoeira e práticas corporais para as crianças do grupo 2 ao 5. Meu trabalho é dentro de uma perspectiva interseccional e isso inclui os debates sobre gênero, raça, classe, sexualidade e territorialidade. Não consigo pensar uma educação que não leve em consideração esses fatores. E é justamente por falta de debates como esse que temos um país Racista, Machista, Misógino, LGBTFÓBICO que legitima e permite que a cada 11 minutos uma mulher cis seja estuprada.

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A escola Maria Felipa abriu esse ano. Então essa esse é meu primeiro emprego depois de formado. Já dei aula na Creche da Uefs (onde atuei como professor de educação física através de bolsa acadêmica) lá trabalhei com crianças do berçário até o grupo 3. Foi uma experiência incrível que ficou marcada e registrada em minha monografia.

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O Brasil é país que mais mata pessoas trans e travestis no mundo. Nossa expectativa de vida é de apenas 35 anos. Outro dado vergonhoso é que apenas 0,02% da população trans e travesti está nas universidades.  É esse mesmo país que assiste de camarote o genocídio da população negra e que tem feito de tudo pra silenciar e invisibilizar as dissidências sexuais e de gênero. Acredito que a postagem viralizou justamente por conta das que resistem. Das pessoas que seguem…

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Ao contrário do que pensam , somos maioria e tem muita gente que assim como eu, acredita no poder Transformador da Educação.Que apoia e luta por uma educação para além do capital , dos retrocessos e dos fascismos. Pessoas que existem e resistem em meio a todos os descasos e retiradas de direitos e que por mais difícil que a conjuntura possa parecer, seguiremos de mãos dadas na luta por um mundo que seja capaz de contemplar todas as pessoas. A Escolinha Maria Felipa faz história e servirá de exemplo, se colocando como aliada na luta contra a Lgbtfobia , demonstrando o real sentido e significado da Educação inclusiva e TRANSformadora. Em meio a tempos de fascismos e perdas de direitos posicionamentos como esses nos mostra que estamos no caminho .

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Sou a primeira pessoa trans a formar na Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs). Foi muito difícil estar em uma universidade. O mais difícil foi estar entre praticamente 18 mil estudantes e ser a única pessoa trans da Uefs. Foi um percurso muito solitário.

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Muitas pessoas trans e travestis tiveram que morrer para que eu pudesse chegar até aqui. Quando uma pessoa trans ocupa qualquer espaço na sociedade ela leva consigo toda uma história de luta e resistência, que servirá de incentivo para todas as outras que virão. Isso é motivo de muito orgulho. Essa conquista é coletiva e envolve muitas redes de afeto e acolhimento.  Minha primeira luta foi para que eu pudesse ter o meu nome reconhecido, porque a primeira coisa que a gente tem, que legitima nossa existência nessa sociedade , é o nome.

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Na minha época, a Uefes ainda não fazia uso do nome social e eu fui a primeira pessoa a reivindicar esse direito. Eu tive que travar essa luta junto com outras pessoas da universidade, militantes, pessoas LGBT’s que eram minhas amigas e amigos e tive a sorte de contar com alguns professores que me acolheram nesse processo.

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Todo semestre tinha que enviar e-mails falando que era uma pessoa trans e que gostaria de usar meu nome social, que gostaria que eles me chamassem pelo nome que me representava. E aí, a maioria dos professores tinham dificuldades de compreender. Muitos fingiam que estavam respeitando, mas eu era exposto a todo momento nas aulas. Tinham professores que na minha frente respeitava, mas por trás, com outros colegas e às vezes com outros professores, eles diziam que iam sempre me tratar pelo gênero que eu nasci, que eu nunca ia ser homem.

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Essas são algumas barreiras que a gente encontra, que mostram a lacuna na formação desses professores. Eles não são preparados e não têm disciplinas que os ensine a lidar com as diversidades de gênero, com as identidades de gênero, e tantas outras pluralidades dentro da perspectiva de gênero e sexualidade.

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Eu passava o dia todo na universidade. Muitas vezes eu fiquei o dia inteiro sem urinar. Eu ficava ali aguentando porque eu não conseguia entrar no banheiro feminino, não me sentia confortável por não me identificar com o gênero feminino. Também não entrava no [banheiro] masculino porque naquele momento, no meu processo inicial de transição, eu não tinha uma leitura social masculina, o que fazia com que as pessoas não me respeitassem como homem.

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Não é pensado o corpo trans dentro desses processos. Isso contribui para a evasão. Para que pessoas trans e travestis não consigam concluir o Ensino Médio. Para que elas não consigam, inclusive, permanecer na Educação Básica. A partir do momento em que eu falei que era um homem trans, que meu nome era Bruno, as pessoas tentaram me acolher da melhor forma possível. Eu construí uma relação muito linda com meus colegas de curso. Não é à toa que eu fui escolhido o orador da turma.

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Com certeza, se eu tivesse transicionado antes de entrar na universidade era bem provável que eu não conseguisse entrar. Primeiro, pelo próprio processo de acesso à universidade, que é a prova de vestibular, que não tem nome social. Isso acaba excluindo pessoas trans e travestis, que almejam entrar em um processo seletivo desse. Durante o processo de transição, eu percebi o meu corpo mudando, com barba, com características que faziam com que eu tivesse uma leitura masculina social, fazendo com que as pessoas olhassem para mim e me lessem como homem. Quanto mais essas coisas foram acontecendo e esses processos foram avançando, as pessoas da universidade começaram a se adaptar, a se acostumar com a minha figura transitando ali dentro.

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A nossa luta, enquanto movimento de pessoas trans é pela despatologização das nossas identidades, para que a gente possa ter uma vida normal, que a gente consiga transitar, que a gente consiga existir na sociedade sem ser violentado, sem ser exterminado, como tem acontecido com a gente, por conta desse conservadorismo e dessa transfobia, não só institucional, mas social. Queremos ter nossa humanidade reconhecida. Concluir essa graduação significou abrir portas e janelas para que outras de nós passem a ocupar o que é nosso por direito. Eu retifiquei nome e gênero já tem quatro anos . A minha vontade de fazer esse enfrentamento foi para deixar esse legado, para que outras pessoas trans pudessem usufruir.

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“Eu relatei na minha monografia todo esse processo autobiográfico falando da minha trajetória enquanto homem trans em um curso de Educação Física, problematizando a formação docente e apontando caminhos possíveis entre a educação física e a transgeneridade.

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Existe um processo de patologização das identidades trans e travestis, e por conta dele temos nossas identidades deslegitimadas, invisibilizadas e marginalizadas socialmente. Os dados revelam que o Brasil está em 1° lugar no assassinato de pessoas Trans no mundo, em 2º lugar está o México, que mata 4 vezes menos, segundo o Transgender Europe.

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Em tempo:  A escolinha Maria Felipa desde que foi concebida, dentro da perspectiva Ubuntu “eu sou porque nós somos”, vem recebendo incentivos coletivos de afeto, admiração, compartilhamento nas redes socais de divulgação, predisposição das pessoas em ajudar de diversas formas (trabalho voluntário, doação financeira) e, assim, todo esse ciclo vem dialogando com o nosso viés ideológico de aquilombamento. Em 28 de janeiro de 2019,  a escola começou a campanha “Adote umx educandx Maria Felipa”, que visa ampliar o nosso número de bolsas integrais destinadas às crianças em situação de vulnerabilidade socioeconômica. Para contribuir basta acessar o link da vaquinha virtual. 

 

Jorge Gauthier
Jorge Gauthier
Jornalista, adora Beyoncé e não abre mão de uma boa fechação! mesalte@redebahahia.com.br

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