Eu adoro a novela Segundo Sol. Mas neste sábado (26) tive um compromisso bem na hora da exibição do capítulo, mas mesmo que eu quisesse me isolar do mundo sobre o assunto não consegui. Pelo direct do Instagram e via mensagens de WhatsApp recebi dezenas de mensagens me alertando para o fato de Ionan e Maura terem se beijado.

Se por acaso você não sabe nada da novela vai aí uma explicação pocket: Maura (Nanda Costa) mora junto com Selma (Carol Fazu). Ionan (Armando Babaioff) é casado com Doralice (Roberta Rodrigues), mas doou sêmen para Maura fazer inseminação artificial. Depois da gestação consumada os dois – que são policiais e trabalham na mesma delegacia – começaram a se aproximar. Neste sábado (25) rolou um beijo que causou alvoroço na web. 

E qual o problema de tudo isso? Bom, vamos por partes.

Primeiramente há um risco com essa ‘virada’ afetiva dos personagens. Maura foi construída para o público – pelo menos até então – com uma mulher lésbica. A partir do momento em que, na trama, ela se relaciona com um homem abre precedente para a proliferação de discursos de cunho preconceituoso. Foi exatamente o que aconteceu. No Twitter, por exemplo, surgiram comentários do tipo: ‘tá vendo aí. pra deixar de ser sapatão basta ter um homem de verdade’.

Conversando com amigas minhas lésbicas elas me alertaram para um risco paralelo a isso: o chamado estupro corretivo. O termo revela uma crueldade a qual muitas mulheres lésbicas são submetidas. “Quando eu tinha 16 anos contei para minha família que eu era lésbica. Mandado por meu pai, um primo me estuprou. Na época eles falaram que eu precisaria ter um homem entre as pernas para poder ter certeza que não gostava disso. Fui violentada dentro da minha própria casa”, revela a fisioterapeuta que hoje tem 29 anos.

O caso da fisioterapeuta aconteceu em uma cidade do interior da Bahia mas apesar de ter acontecido há tanto tempo ainda é um risco que ronda muitas mulheres lésbicas. “Os homens acham que são donos do nosso corpo. Para a sociedade machista e patriarcal é inadmissível que uma mulher não queria ter um homem ao seu lado. Não. Não precisamos! Uma mulher tem que ser livre para decidir com quem fica, inclusive, com outra mulher”, ressalta.

Uma outra jovem, que revelou para a família no mês passado que era lésbica, contou ao Me Salte que logo após ser exibida a cena entre Maura e Ionan recebeu uma mensagem do pai que dizia: ‘Veja o que aconteceu na novela. Maura era sapatão e já beijou um homem. Você deveria tentar também’. 

Para ela foi como se o mundo se abrisse novamente. “Eu tinha tido uma conversa super difícil com minha família. Eles tinham me dado um voto de confiança para que eu apresentasse minha vida para eles. Mas, depois que passou isso na novela virou um inferno. Meu pai não para de me dizer que posso ser ‘curada igual a Maura'”, conta a estudante de 19 anos.

O comentário do pai da jovem que citei acima é um dos que mais ganhou força nas redes sociais depois da exibição da cena da novela. São comentários que induzem o pensamento de que existe ‘uma cura gay’.

Para começo de conversa não há cura para o que não é doença. Desde 1973 que os Estados Unidos retirou  o termo “homossexualismo” da lista dos distúrbios mentais da American Psychology Association, passando a ser usado o termo homossexualidade.

Desde fevereiro de 1985, o Conselho Federal de Medicina aprovou a retirada, no Brasil, da homossexualidade do código 302.0, referente aos desvios e transtornos sexuais. Em 17 de maio de 1990, a Assembleia Mundial da Saúde aprovou a retirada do código 302.0 da Classificação Internacional de Doenças da Organização Mundial da Saúde. A nova classificação entrou em vigor entre os países-membro das Nações Unidas a partir de 1º de janeiro de 1993.

Outro aspecto importantíssimo que precisa ser levado em consideração é que Maura na verdade pode ser uma mulher bissexual. Sim, amigos! O ‘B’ da sigla LGBTQ+ não é de biscoito. É de bissexuais que são pessoas que se relacionam afetiva e sexualmente com pessoas de ambos os sexos/gêneros. Bi é uma forma reduzida de falar de pessoas Bissexuais.

Se a personagem Maura foi bi será uma ótima oportunidade de se visibilizar essas pessoas. Contudo, se a intenção for essa ela já começa com um erro grave: reforçar ao esteriótipo de que todo bissexual é uma pessoa que trai com facilidade.

Não sabemos ao certo o que o autor João Emanuel Carneiro quer com essa ação dos personagens, mas é preciso ter muito cuidado especialmente nesse momento em que o país vive uma dualidade entre o conservadorismo e o lado oposto. A televisão tem peso e influencia as pessoas. Infeliz ou felizmente a TV acaba tendo um efeito multiplicador. Quando se coloca em evidência uma ‘cura gay’ isso reflete na vida das pessoas. Novela não é só entretenimento. Novela é também informação e responsabilidade social.

Por sorte, a novela é uma obra aberta! Ou seja, João Emanuel Carneiro alinhe esses fluxos para que a novela (que é tão maravilhosa) acabe virando um deserviço para toda a população LGBTQ+.