A maquiagem demorou quase uma hora para ser finalizada. Os chifres de lantejoulas vermelhas compunham a fantasia de diabo. Mas, na hora que eu pisei o pé na rua os gritos foram de ‘aí vai do viadinho’, ‘quer cerveja, viadinho’ , ‘olha como o viadinho rebola’. Mais do que uma troca do ‘d’ pelo ‘v’ o que vi e ouvi neste Carnaval de Salvador foram manifestações gratuitas de preconceito contra os LGBTs. Desde 2005 pulo Carnaval em Salvador e isso sempre existiu. Contudo, esse ano foi maior. Na verdade foi proporcional a uma maior fatia de atrações voltadas para o público da diversidade. Mas, as bichas reagiram no mesmo tom.
Ao lado de toda atração que tinha o ímã do arco-íris era certeiro ver os foliões e atrações LGBTs sendo hostilizados da forma mais odiosa possível. Do primeiro trio sem cordas que acompanhei na quinta-feira (08) com Claudia Leitte ao de Pabllo Vittar ontem (13) muitas bichas foram humilhadas por falas, gestos e ações de heteros preconceituosos. Porém, contudo, entretanto…… ao mesmo tempo que recebiam os insultos as bichas se uniram para mostrar que quanto mais reclamar mais ‘viados’ vão ter.
Quando saiu a programação oficial da festa já ligou-se o alerta cor de rosa: de quinta à terça o circuito da Barra-Ondina (especialmente) estava concentrando diversas atrações que tinham gays como foliões em potencial. Isso virou realidade. 2018 foi de fato o carnaval da diversidade. O resultado disso ficou claro com a repercussão da festa: por onde passei neste Carnaval – e olhe que rodei bastante – era unânime ouvir heteros se queixando no excesso de ‘viados’ no circuito. Comentar isso, de fato, não seria um problema. A forma de reagir a isso que sim.
Ontem, durante a passagem de Pabllo Vittar (drag queen com maior expressão artística no Brasil no momento) a dicotomia entre preconceito e lacração ficou mais evidente. Bixas pretas, brancas, gordas, magras, afeminadas, barbies, ursas….estavam atrás do trio da artista. Ela estava ainda com as drags Aretuza Lovi e Glória Groove; a dupla As Bahias e a Cozinha Mineira e o cantor gay Matheus Carrilho.
Visivelmente incomodados com a presença de tanta purpurina na avenida não foi difícil ver e ouvir insultos e ofensas às artistas que estavam no trio e também quem seguia atrás deles. “Olha prali que desgraça esse macho e fêmea em cima do trio. Só grita e atrás dele só tem desgraça também”, afirmou um vendedor ambulante para outro que recriminou ao perceber que eu – viado – estava colado no isopor para comprar cerveja. Obviamente não comprei na mão dele e segui para o isopor vizinho onde uma senhora lacrativa gritava ‘beba cerveja meus queridos viados’. Comprei tantas como duas cervejas de uma vez.
O preconceito é acéfalo e sem limites. No Campo Grande, por exemplo, uma mulher transexual foi agredida por um ser humano de pouca luz vestido de Muquirana enquanto viam a passagem da diversa pipoca da rainha de Daniela Mercury na terça-feira de Carnaval. “Ele chegou por trás da minha saia e me apalpou dizendo que queria ver se tinha uma surpresinha alí debaixo”. Nunca me senti tão agredida. Não tive outra reação: tasquei um tapão na cara dele na hora.
O Beco das Cores, espaço com músicas eletrônicas na rua Dias D’Ávila (na Barra), por exemplo, em tese, deveria ser um ambiente livre de preconceitos. Um belo dia enquanto eu estava passando escutei a frase em sotaque carioca direcionada a um grupo bem lacrativo que estava à minha frente. “Bem que me falaram que Salvador estava cheio de viado. O Estado Islâmico deveria vir aqui explodir esse beco”. Como presente ele recebeu vaias e a coreografia do hino gay I Will Survive (Gloria Gaynor).
Mas não foram apenas dos ‘foliões avulsos’ que causaram problemas. O setor de serviços do Carnaval também deixou a desejar. Cerca de R$1,7 bilhão foram movimentados na cidade durante o Carnaval, que recebeu quase 800 mil turistas. A rede hoteleira bateu recordes de ocupação, o que é um indicativo importante do êxito econômico da folia. A média de ocupação chegou a 93%, segundo estimativa da Federação Baiana de Hospedagem e Alimentação (FeBHA). Não é possível dimensionar quanto desse percentual venha no chamado pink money (expressão que referencia o dinheiro dos LGBTs), inclusive daqueles que são da cidade, mas tenho certeza que são muitos que não necessariamente sairão felizes com os tratamentos que receberam em determinados locais por pessoas contratadas para prestar serviço.
Foi o que aconteceu no Camarote Skol Beats, no sábado, como já relatei no Me Salte. Por volta das 3h um grupo com cerca de 10 seguranças entrou em um dos banheiros do camarote fazendo insultos e ameaças. Eles esmurravam as portas dos banheiros para tentar achar alguma cabine onde tivessem dois homens juntos. ‘Se eu te pegar de novo você vai se arrasar’, gritava um dos seguranças quando achou dois homens em uma cabine. Em função do ocorrido, a empresa organizadora do camarote lamentou ‘o ocorrido e informa que está averiguando os fatos para as devidas providências’.
Na pipoca de Anitta – outra que arrastou uma legião de gays – as ofensas ficaram por conta de alguns cordeiros que estavam à frente do trio. “Afasta do trio seu viado”, “Afasta daqui sua desgraça” e “Se me tocar mais uma vez tu vai engolir esses brilhos da sua cara”. Essas foram algumas das frases que foliões ouviram enquanto se espremiam para rebolar ao som dos singles Vai Malandra, Bang, etc. Um folião seguidor do Me Salte relatou, inclusive, que presenciou seguranças do bloco dando tapas nas pessoas: “Em um momento ouvi eles falando entre sí ‘anda bichinha’/ ‘quer morre, viado’ sem se importar com o público na frente sendo esmagado”.
Do outro lado da corrente vale a menção honorrosa para a Boate Blacktape no Camarote Expresso 2222. Animadíssimos e gentis com os clientes – a maioria homens gays – os garçons dançavam e se integravam como os foliões.
O volume de insultos e agressões verbais – e alguns casos físicas – que os LGBTs sofreram neste Carnaval refletem também nossa maior presença. De fato, os LGBTs – os gays em sua maioria – botaram a cara de glitter na rua prontos pro atraque e diversão. As reações LGBTs às ofensas foram múltiplas. O que dizer dos blocos O Vale (Alinne Rosa), Blow Out/ Largadinho (Claudia Leitte) e Crocodilo (Daniela Mercury)? Todos LOTADOS de gays que se divertiram e mostraram o poder deste nicho dentro do mercado tão defasado dos blocos de corda.
As pipocas cor-de-rosa, como foram chamados os trios com mais seguidores LGBTs, figuraram entre as mais cheias. Alinne Rosa, Claudia Leitte, Daniela Mercury, Babado Novo, Os Mascarados, Margareth Menezes…. Isso porque ainda faltou a de Ivete (se prepara 2019 que vamos tacar ainda mais viados). O maior número de atrações que dialogam com a diversidade não vai recuar. Pelo contrário. A tendência dos gestores e dos empresários é cada vez mais abrir os olhos para esse mercado. Afinal, o que percebo é que o preconceito se esconde quando o dinheiro aparece.
E Daniela Mercury? Mulher, gay e empoderada. Usou sua expressão para fazer seu banzeiro se tornar cada vez mais visível e visibilizar outras tantas bichas em seu bloco, seus trios e na sua pipoca. Fortaleceu os elos de identificação com seu público. Muito bom ser bicha e ver uma mulher gay no topo do poder. Rainha, né! mores :>
Apesar de ter passado metade do circuito sem cantar (em função de uma troca de figurino passando os vocais para as convidadas) a presença de Pabllo Vittar, uma drag pela primeira vez a comandar um trio sem cordas é representativa e simbólica. Ver as bees afeminadas, como ela mesma faz questão de dizer que é, colocando a cara na rua sem medo de ser feliz foi de encher os olhos de lágrimas (#momentosignodepeixes).
O hit ‘Ai que delícia ser viado’ foi entoado com um hino de proteção nos circuitos, becos e vielas. Foi a melhor resposta para cada insulto:
Ah, e antes que você diga que tudo isso é ‘mimimi’ – como fazem os preconceituosos que dizem que não são – ser agredido de forma verbal e/ou física dói apenas em quem sente. Se você em algum momento insultou algum LGBT pare um segundo e imagine se alguém lhe julgasse pelo que você é; lhe insultasse pela forma como você age ou se veste; violasse seu corpo por achar que ele não lhe pertence. Isso dói e fere o coração de quem sofre a agressão.
A expressão ‘só tem viado’ foi talvez a que mais eu ouvi nesse Carnaval. Heteros frustrados por não terem ‘opção’ para paquerar ou irritados exclusivamente pela nossa presença foram muitos. Infelizmente. O carnaval deveria ser o momento de liberdade e felicidade. As pessoas deveriam, pelo menos na folia, deixar seus preconceitos de lado. Não consigo conceber um ‘homem hetero’ que ‘se veste de mulher’ e mesmo assim ainda é preconceituoso. Onde fica seu amor à liberdade. Dois pesos e duas medidas.
Uma dica para os heteros que não conseguem conviver com as diferenças para o próximo Carnaval: escolham suas saídas de acordo com os lugares onde terão ‘menos viados’ – já viram que tem pouco viado nos blocos de Bell Marques ou Durval Lellys, por exemplo? Se vai num camarote compra aquele dia com atração cafuçu e deixa o dia dos viados para as gays, rs! Mas, talvez, a melhor dica seja: ACEITA QUE DÓI MENOS E DEIXA AS BIXAS SEREM FELIZES.