Dani,
Me permita te chamar assim. Não pelos diversos contatos que já tivemos por causa das nossas profissões, como artista e jornalista, mas pela intimidade que tenho com sua arte ao longo desses 21 anos.
Não sei quando comecei a gostar de você, ou de sua música. Minha memória mais antiga vem de um encarte da Som Livre para comprarmos CD’s que recebíamos em casa. O encarte veio junto com o moderno toca-discos típico da década de 90. Lá em casa, cada um teve o direito de escolher um CD. Meus irmãos ficaram com Netinho e com Claudinho e Buchecha. Eu escolhi você, com o “Feijão com Arroz”. O ano era 1997. E foi ali, naquele momento, que senti pela primeira vez o peso do preconceito. Lembro de ouvir “você tem certeza”, “hum… sei não”, “logo Daniela?”… Hoje, infelizmente, entendo o motivo.
Lembro também da primeira pergunta que te fiz como jornalista, muitos anos depois de comprar esse disco. Estava no começo de minha carreira. Tão no começo que, veja só, o gravador não estava ligado. A resposta ficou apenas na minha memória. Perguntei qual foi o momento em que você decidiu que seria cantora.
Minhas palavras jamais vão conseguir repetir a emoção daquela resposta. Talvez tenha sido a única vez, em entrevista, que você tenha dado essa declaração. Você disse estar no teatro, sentada na beira da cadeira, com as mãos cerradas no braço da poltrona.“Eu vi a força daquela mulher, e era algo sobrenatural. Foi ali que eu defini minha vida”. A mulher era Elis Regina e o espetáculo Transversal do Tempo.
Elis morreu em 1982. Eu nasci em 89. Mas vi essa mesma força no Camarote da Rainha, em 2013. Eu estava na varanda quando você chegou, de repente, e cantou “Oyá Por Nós” com o olhar fixo pro céu. Foi naquela época que surgiram os primeiros rumores sobre seu relacionamento com Malu. E ali, seu canto era reza.
Não sei se você sabe, mas era comum que muitos foliões do Crocodilo jogassem o abadá fora na dispersão. O medo da agressão na volta pra casa. O medo da família ver aquele símbolo. O medo do preconceito. Eu sempre te acompanhei na pipoca (assim podia fingir acaso se me encontrassem na corda do bloco), mas tudo mudou quando ganhei o abadá do Crocodilo de um folião no meio do desfile. Vestir aquela camisa ali foi tão simbólico que, na volta pra casa, lavei aquele pedaço de pano e guardei no fundo do meu armário, real e imaginário.
É ouvindo agora o Feijão com Arroz, 21 anos depois, que escrevo para dizer ‘muito obrigado’. Não é fácil ser vidraça. Não é fácil sofrer preconceito. Ouvi na minha adolescência conselhos dizendo para ficar longe do Crocodilo, “que ali só tinha viado”. Ouvi, já adulto, mais uma vez pessoas dizendo para ficar longe do seu bloco “que só tinha bicha pão com ovo”. E ouço agora o silêncio profundo de quem pôde colher o fruto de todas essas agressões e se mantém imóvel.
Ano passado eu estava vivendo a Parada do Orgulho Mundial, em Madrid. E enquanto via uma cidade inteira aberta à diversidade, acompanhei uma entrevista sua ao lado de Malu em que você desabafava sobre o peso dessa luta. Um desabafo tão necessário quanto o feito durante o Festival de Garanhuns neste ano.
“Nenhuma porta se abriu. Eu só arrumei uma causa que não é nem um pouco confortável de se falar todo dia. É desgastante. É muito desagradável. Todas as vezes que eu e Malu saímos de casa para falar desse assunto a gente pensa se a gente está realmente disposta a falar disso. É muito cansativo emocionalmente”.
Mas é nessa mesma entrevista que você diz que ser gay foi a ferramenta mais extraordinária para mudar o mundo depois da música. Então, Dani… Por favor, não se canse. E nem se cale.
Assim como Elza, você deixa na Avenida sua pele preta e a sua voz; sua fala e sua opinião. E na chuva de confetes deixe sua dor e essa solidão.
Seja a mulher do fim do mundo. Cante até o fim
Com amor, Bruno Brasil*
*Bruno Brasil é jornalista e escreveu esse texto gentilmente para o Me Salte