Por Allan Nascimento e Paulo Malvezzi
No Instagram, quem acompanha o perfil de Jean Wyllys já percebeu que nos últimos meses o ex-deputado federal tem se expressado cada vez mais por meio de desenhos. O feed anda dominado por eles, frutos da primeira expressão artística que lhe surgiu, antes mesmo da palavra, segundo Wyllys. Hoje, os desenhos são uma forma de se reconectar com o menino de Alagoinhas, cidade do agreste baiano, que foi censurado por uma vida de privações.
Para o ex-deputado, os traços são um meio de não deixar que o autoexílio apague uma subjetividade que é lembrança de casa justo no momento em que precisa se manter longe.
Há dois anos fora do Brasil, Jean Wyllys, que atualmente vive em Barcelona, na Espanha, explica em entrevista à Agência Diadorim que os desenhos também são elementos de sua pesquisa sobre fake news.
Ele quer saber como outras formas de expressão, que não o texto, podem impactar as pessoas. Quer respostas para perguntas que, pessoalmente, lhe são caras: a arte tem como desarmar a turba? Consegue desarticular um exército de haters? Para quem já foi alvo de ataques e ameaças, responder essas questões é achar o elixir da era do cancelamento. É evitar que outras pessoas precisem buscar abrigo fora do seu país, longe da família, dos amigos e dos companheiros de luta para sobreviver.
Ao lado de Sig, um cachorrinho que lhe faz companhia nos últimos meses, o escritor e pesquisador fala sobre política, afetos e a experiência de viver no exílio durante uma pandemia.
Alguns dos desenhos de Jean Wyllys ilustram o texto a seguir, com animação feita por Tomaz Alencar.
Você já falou em algumas entrevistas sobre a solidão do homem gay e que, por ser uma pessoa pública e muito alvo de ataques, ter relacionamentos é algo um pouco difícil para você, o que acaba também criando um outro tipo de solidão na sua vida. Pensando sobre isso e também pensando sobre exílio e, mais específico ainda, sobre exílio durante uma pandemia, como tem sido sua vida nos últimos meses?
WYLLYS – Não tem sido nada fácil. Quando falo sobre a solidão do homem gay, falo sobre uma experiência de ser gay. Apesar de existir uma diversidade de experiências no ser gay, também há muita coisa comum entre nós, e o que nos constitui como comunidade é justamente isso. O que há de comum entre nós, lamentavelmente, vem muito da nossa experiência com a homofobia. A homofobia produz diferentes histórias, mas histórias com pontos parecidos. E um desses pontos era, até muito pouco tempo atrás, a solidão. É claro que essa experiência vem mudando com as conquistas do movimento LGBTI+, alcançadas ao longo dos anos, como o matrimônio igualitário e as novas identidades de gênero. Então eu falo de uma experiência que até pouco tempo foi uma experiência recorrente e muito presente na minha vida.
Eu venho da pobreza, das classes populares. Vivi uma parte da minha vida na extrema miséria e trabalho desde os dez anos. O éthos do trabalho sempre foi prioridade para mim, que tinha a necessidade de tirar a minha família da miséria e, de certa forma, ocupar o lugar do meu pai, porque ele tinha problemas com alcoolismo e eu era o primeiro filho homem. Trabalhar sempre foi um imperativo na minha vida e, como diz Belchior, a minha alucinação era enfrentar o dia a dia, nunca foram os romances astrais […].
A fama também traz uma dimensão de solidão. Nunca me deixei enganar por essa coisa do assédio, de muita gente ao redor. Esse canto da sereia nunca me enganou, nunca me seduziu. Sempre fui pé no chão na relação com a fama e com todas as armadilhas que ela traz. Depois disso, veio a representação política, que também traz uma responsabilidade muito grande. A partir do momento que eu sou um homem gay e me torno um deputado federal, tenho que ter a completa responsabilidade de que não estou mais falando só por mim. Ainda que quisesse, não se fala só de si quando você é uma minoria e ocupa um espaço de poder. Isso estava claro. Tudo o que incide sobre mim incidiria sobre a comunidade da qual faço parte, gostasse eu ou não, e gostasse essa comunidade ou não. Eu era um representante no parlamento, o que me obrigava a ter muita responsabilidade e também me gerava mais solidão.
Muitos homens públicos heterossexuais brasileiros têm amantes ou mantêm segundas famílias, frequentam clubes, e isso não é um problema para eles, porque o mundo é da dominação masculina, da heteronormatividade. Se eu fosse visto numa sauna gay e se alguém me filmasse, seria outra história. Sobre um homem gay, essas questões pesam como pesam sobre uma mulher. Uma mulher está sendo policiada na vida privada para que isso vire um escândalo na vida pública dela.
Eu tinha essa consciência, de que essa vivência me trazia uma responsabilidade, algo que foi limitando minha vida. Eu não beijava mais na boate, como fazia antes. Por quê? Apesar de um beijo não ser um problema, e eu lutava pela liberdade dos corpos, pelo direito dos corpos de se expressarem, não podia ser flagrado num vídeo fazendo isso porque serviria a um discurso difamatório. Todas as outras pessoas poderiam e deveriam fazer isso. Agora eu, como representante, até esse momento, não poderia fazer, então isso foi me trazendo uma relação com o mundo cada vez mais difícil […].
Daí veio o exílio, que foi muito importante porque tem me mantido protegido, me manteve vivo, mas também é uma forma de solidão. Foi um afastamento dos meus amigos, da minha família, do meu país, das minhas paisagens, da minha língua, para continuar vivo. Isso provoca uma contradição. Para completar, de 2019 para 2020 a gente começou a viver uma pandemia. Dentro desse isolamento, dessa solidão do exílio, veio outra solidão, que é a solidão da pandemia, de ser um homem só, de viver só, e aí o meu cachorrinho veio como parte desse enfrentamento. Para eu não ficar tão só, minha amiga Noemia [Boianovsky, advogada e ex-chefe de gabinete de Jean Wyllys] adotou um cachorrinho sem que eu soubesse e me mandou.
Você foi eleito pelo PSOL, e, durante muitos anos, foi uma figura de referência para a bancada do partido, que, recentemente, teve uma série de disputas, inclusive publicamente, em relação à estratégia adotada para a eleição do presidente da Câmara. Houve até acusação de fisiologismo. Você tem alguma posição sobre essa questão tática? O que você acha que esse tipo de situação diz sobre as dificuldades da esquerda de construir unidade?
WYLLYS – Eu não vou falar sobre o partido, porque eu estou muito tempo afastado. Sigo filiado, mas não tenho uma vida partidária – já não tinha quando era membro do partido e era deputado federal. Sempre tive um mandato muito independente da estrutura partidária, eu dialogava muito para fora. Meu interesse era falar com os movimentos sociais, com entidades da sociedade civil, instituições democráticas, com a academia, com os artistas. Não me interessava a disputa interna do partido, o que era ruim por um lado, do ponto de vista de que eu não formava uma maioria dentro do partido, não tinha militantes orgânicos para fazer minhas campanhas, mas, por outro lado, me dava completa autonomia em relação às minhas posições.
Por exemplo: quando decidi entrar no segundo turno na campanha da Dilma, em 2014, para impedir que Aécio Neves e os plutocratas brasileiros vencessem as eleições, fiz sem consultar o partido e fiz porque era o certo na época. Fiz não porque eu esperasse um cargo do governo Dilma. Não esperava, não esperei e não queria um cargo. É possível fazer política de uma maneira decente. É possível fazer política por princípio. Quando você entra na política, tem que entender que a política é uma mesa de negociação. E aí eu estou falando de uma imagem que Hannah Arendt traz da política, que seria como uma mesa, que é, ao mesmo tempo, um espaço de distanciamento, onde se marca posições, mas também reúne.
A política é isso. Você não pode se eleger parlamentar e achar que não vai lidar com gente que você, do ponto de vista pessoal, detesta e execra. Você tem que lidar com essas pessoas naquele espaço do parlamento, e, em alguns momentos, você precisa decidir o rumo da coletividade junto com elas, seja porque estão entre os membros de comissões ou porque integram mesa diretora. A institucionalidade não existe sem elas. Se a gente pensar no bem da coletividade, a gente tem que sentar com elas. Aí vem a distinção entre a boa e a má política. Isso não quer dizer que você tenha que fazê-la baseado em cargos ou vantagens pessoais, mas você tem que fazer pensando na coletividade […].
Eu fui uma das primeiras pessoas a se colocarem contrárias ao que estava sendo tramado contra a [ex-presidente] Dilma [Rousseff (PT)]. Eu era oposição ao PT, fazia política de oposição ao PT no Parlamento, mas quando percebi que o golpe ia ser perpetrado, o certo era estar do lado dela. E não precisei ter nada em troca para isso.
Um momento como o atual – em que a gente tem mais de 230 mil mortos e uma nova variante da Covid-19, com o isolamento internacional do país, com o fascismo crescendo nos espaços –, exige uma grande responsabilidade que envolve se colocar ao lado do que é melhor para a coletividade, ainda que não seja o melhor para mim, para minha biografia, para o meu partido. O que é melhor para as pessoas neste momento? Como eu posso fazer isso deixando claro para as pessoas [o que acho]? Não é endossar mau-caratismo, mas entender o que é melhor para a defesa da institucionalidade da nação.
Esse é um pouco do meu pensamento. Política é algo sério a se fazer, e é possível fazer política com decência. Sei que o sistema muitas vezes, ou quase sempre, nos derruba, trama golpes, levanta traidores, nos prende injustamente às vésperas das eleições, nos manda ao exílio e nos executa.
Dilma, uma mulher decente, foi derrubada por esse sistema, mas Dilma não deixou de fazer política; Lula é o melhor presidente que o Brasil já teve, mas teve que negociar com figuras execráveis das oligarquias políticas e das elites brasileiras, e ele, que fez essa grande política, foi preso; eu estou no exílio, como [a filósofa] Márcia Tiburi e [a antropóloga] Débora Diniz também estão; e [a vereadora] Marielle Franco foi executada, como [o ambientalista] Chico Mendes foi executado. Ou seja, não é fácil fazer política, mas a política não pode ser abandonada.
Com a sua saída do Parlamento, há a impressão de que tanto as vozes quanto as pautas LGBTI+ naquele espaço perderam um pouco de visibilidade e potência. Você acha que isso é um reflexo da conjuntura política que a gente vive?
WYLLYS – Essa é uma pergunta difícil de se responder. De que Parlamento estamos falando? Nas últimas eleições municipais, figuras LGBTs foram eleitas para parlamentos municipais e, de certa maneira, dão continuidade às sementes que nossos mandatos produziram. Há um reflexo, porque esse ambiente fascista, da extrema direita, reacionário, silencia também. É difícil avaliar esses aspectos porque não estou aí, sigo atuando de outra maneira fora do parlamento.
Mas o que tenho a dizer é que eu fico feliz com as eleições municipais, com as vozes que se ergueram e que foram eleitas – por exemplo, Erika Hilton [vereadora em São Paulo pelo PSOL]. Eu fiz campanha para muita gente, […] pela responsabilidade por tudo que eu represento, com o compromisso que eu tenho com meu povo, a minha gente, as pessoas que eu considero, o país que eu gosto, a parte do país que eu gosto (que é a grande maioria), por esse compromisso eu estive nessa campanha. Fiz vídeos e postagens para diferentes candidatos do Brasil inteiro, alguns se elegeram, outros saíram bem votados, e eu fico muito feliz com esse resultado.
Recentemente, o escritor João Silvério Trevisan, em entrevista à Diadorim, falou que via com preocupação o inflacionamento das letras da sigla do movimento LGBTI+, e que isso deveria ser olhado com certa atenção. Você concorda com ele?
WYLLYS – Eu concordo inteiramente com João Silvério Trevisan, e vou repetir o que eu disse recentemente numa live sobre esse assunto: os movimentos de minorias não têm absoluta autoridade moral, não têm o monopólio da virtude. Acho que as identidades podem e devem se expressar, as liberdades individuais devem ser defendidas e os movimento pelos direitos civis devem permanecer vigilantes e atentos para defender nossa liberdade e as nossas expressões. Agora a gente precisa ter cuidado para um alerta que o Nietzsche faz: se a gente olha muito tempo pro abismo, o abismo olha para a gente. Então, nesse comportamento de mimese, a gente precisa ficar muito atento, porque, senão, sai do lugar de oprimido e se torna opressor – até porque esses lugares não são muito fixos; são lugares muito móveis.
A relação de poder é móvel. Um homem negro, oprimido do ponto de vista étnico-racial e da cor da pele, pode ser um opressor, do ponto de vista de gênero – ele pode bater na mulher, expulsar a filha trans de casa, bater no filho gay. Ou seja, não existe um homem negro em si mesmo. A gente precisa olhar cada situação. As mulheres negras, de um ponto de vista geral, ocupam sim a base da pirâmide. Mas há muitas mulheres negras que espancam seus filhos gays, assim que elas percebem que eles são gays, porque elas têm uma formação evangélica, porque a identidade religiosa delas leva à reprodução de homofobia e da transfobia. Há pessoas trans que, por transfobia interlizada, se tornam profundamente misóginas, com uma misoginia asquerosa contra mulheres cis. Então, assim, uma pessoa trans não tem um monopólio da virtude por ser uma pessoa trans, e ela não tem autoridade por ocupar esse lugar em si mesmo.
O lugar de enunciado é importante, mas o que está sendo enunciado precisa ser analisado. Eu vejo com muita preocupação, às vezes, as pessoas que querem dar autoridade ao seu conteúdo por causa do seu lugar de fala. Eu digo: “Não. É um pensamento torto”. Eu não vou jamais ser cúmplice disso, e essa cumplicidade vem de um comportamento, sobretudo na internet, de enxame, em que as pessoas vão se infectando umas às outras – exatamente como o movimento das fake news –, e elas produzem o linchamento virtual, um ataque até levar a pessoa a se retratar publicamente ou a fazer autopunição pública. Existe essa humilhação, principalmente entre nós mesmos. Quer dizer, dentro dos próprios movimentos identitários se exige essa expiação pública, humilhação nas mídias sociais, para que você não siga sendo atacado e humilhado.
Tenho pavor de cancelamento e dessas pessoas que produzem esse movimento de enxame contra as outras, que negam às outras pessoas o direito a uma segunda chance ou direito a se explicar. Vivemos num mundo em que as pessoas precisam e devem se explicar. Eu defendo o sistema de justiça e não o sistema de vingança, por isso eu defendo o Estado de Direito, porque as pessoas precisam de julgamento justo – e isso significa que elas precisam de defesa, precisam evocar coisas em defesa delas, se explicar. Se a gente cancela, elimina essa pessoa, a gente está agindo exatamente como os fascistas.
Então eu vejo com muita preocupação essa inflação que nos divide. Até porque eu sou velho mesmo [dá uma risada], tenho 46 anos e existem coisas que eu nem entendo. Por que os gays estão chamando agora “gay” de “yag”? De onde veio essa maluquice, né? De onde tiraram isso? Desde quando? Ou então esse menosprezo porque você é um homem cis, gay… As identidades são forjadas nas suas complexidades, e há pessoas que são queer e outra pessoas que não são – e estão felizes dentro das suas identidades de gênero. Então por que você vai me atacar pela minha identidade de gênero? Que loucura é essa? Eu sempre lutei para que você tivesse a expressão da sua identidade de gênero, e por que agora você quer atacar a minha identidade de gênero?
Nós lutamos por muito tempo para libertar nossos desejos de normas. Eu lutei por muito tempo para não ser obrigado a namorar mulher, quando eu não queria namorar mulher; lutei muito tempo para poder expressar meu desejo homossexual, e por que agora alguém vai formatar meu desejo ou me obrigar de gostar sexualmente de uma identidade de gênero que eu não goste? Então a gente precisa ter muito cuidado com a manipulação dessa agenda. Essa agenda é muito importante para que ela seja manipulada por aventureiros ou por pessoas que simplesmente querem lacração e aparecer na internet.
Há exatos dois anos, você anunciou seu autoexílio. E nessa experiência sua fora do país, você tem notado uma curiosidade das pessoas para saber como é ser LGBTI+ aqui no Brasil? Existe um consenso fora do país sobre como é ser uma pessoa LGBTI+ aqui no Brasil?
WYLLYS – Olha, o consenso é que pessoas LGBT no Brasil correm mais risco do que em outros lugares onde essa comunidade está mais em segurança e é respeitada, como em alguns estados norte-americanos (não são todos os Estados Unidos que são seguros para pessoas LGBTs, é importante que se diga, porque não é fácil ser LGBT em Indiana, no Arizona, no estados do chamado “Bible Belt”, que são evangélicos e racistas), no Canadá, em alguns países da Europa, sobretudo da Europa Ocidental e em Israel, no Oriente Médio. Ou seja, o consenso é: dentro dos países da América Latina, talvez, nesse momento, o pior país para se ser LGBT é o Brasil, justamente por causa da ascensão da extrema direita à Presidência da República.
De resto, a experiência LGBT tem uma experiência comum – por isso que nós somos, inclusive, uma comunidade internacional. Há muitos modos de vida e muitos mitos que nós compartilhamos. E é claro que o compartilhamento do que há de comum nessa comunidade venha a reboque de outras identidades e de outros processos políticos. Por exemplo: óbvio que o modo de ser gay nos Estados Unidos acaba por ser hegemônico, porque são um país de hegemonia internacional. É óbvio que a cultura gay pop americana acaba se impondo no resto do mundo, na forma das divas, dos videoclipes, de uma gramática da cultura pop, das drags, de um trejeito que vai se impondo ao resto do mundo. E isso faz parte de uma hegemonia que transcende a comunidade LGBT.
Os processos de formação de identidade da comunidade estão ligados a processos mais amplos, que envolvem a geopolítica, o capitalismo neoliberal e sua expansão, seus modos de vida, seus formatos estéticos. Claro que em cada país que assimila esses formatos, há uma luta, uma resistência, e a cultura local vai colocando aspectos seus dentro dessa uniformização. O baile funk brasileiro tem suas especificidades, mas é óbvio que a imposição da cultura pop vai transformando essas meninas de baile, os videoclipes delas vão parecendo com os da Beyoncé, da Nicki Minaj, da Rosalía, e as bichas gostam dessas divas.
A gente não pode perder de vista isso. Nós formamos uma comunidade internacional e corremos, portanto, riscos também em comum. A extrema direita na Europa é homofóbica. Se a extrema direita ameaça o Brasil agora – está empoderada, está na Presidência da República –, o risco dela vencer na Alemanha, na Espanha e em Portugal é justamente porque, vencendo, vai ameaçar a comunidade LGBT local e, assim, a comunidade LGBT internacional.
Aqui no Brasil, a extrema direita personalizou muito esse ataque à homofobia na sua figura. Você viu isso acontecer de forma tão personalizada em outros países?
WYLLYS – Em alguns outros países, sim. Sobretudo em países do Leste europeu, a extrema direita perpetra a violência por meio da homofobia. Claro que depois há uma interseccionalidade do ódio. No caso da França, por exemplo, a extrema direita se assentou muito no discurso xenófobo, anti-imigrante, inclusive manipulando parte da comunidade LGBT e das mulheres contra as populações de origem muçulmana, porque os muçulmanos têm uma cultura fundamentalmente homofóbica.
Mas não só os muçulmanos. Também os cristãos e os judeus têm uma cultura fundamentalmente homofóbica. As três religiões monoteístas, que compartilham o Antigo Testamento, são patriarcais e defendem um sexo para fim de procriação. Isso significa um controle do corpo das mulheres, perseguição, policiamento e conversão em tabu da sexualidade e de toda prática sexual que não seja procriativa – entre elas, a homossexualidade.
Mas não são só os muçulmanos que são homofóbicos, claro. A extrema direita francesa manipula isso e coloca o movimento LGBT contra os muçulmanos, dizendo que, se eles crescerem na França, a liberdade da comunidade estará em risco. Pode ser que seja verdade, mas a liberdade da comunidade LGBT está em risco com cristãos no Brasil, por exemplo, né?
No caso do Brasil, a extrema direita usou a homofobia; no caso da França, a xenofobia; e na Espanha, ela se assentou muito mais contra os imigrantes africanos. Em cada lugar, ela usa um “carro”, mas em todos os lugares ela acaba interseccionando os ódios.
Você, enquanto gay e estrangeiro, já sofreu ataques aí fora?
WYLLYS – Não. Aqui eu tenho uma bolha de segurança. Estou num país da Europa onde a extrema direita está crescendo, mas ainda é um ambiente de segurança.
Vou contar um episódio, que serve de exemplo: o centro LGBT de Barcelona fica em um bairro majoritariamente árabe, com muçulmanos de diferente lugares, e, claro, com presença de latino-americanos – então é um bairro “brown” e também negro, porque há imigrantes africanos. É um bairro popular. Durante muito tempo, foi um bairro estigmatizado. Desde que a esquerda assumiu o poder, foi feito um trabalho de revitalização do bairro.
Mas aí o que aconteceu: houve um ataque ao centro LGBT [em junho de 2019], que a extrema direita espanhola fez para sugerir que seria um ato de muçulmanos radicais. O que a comunidade LGBT fez no dia seguinte? Foram 3 mil pessoas para as ruas, todo mundo junto, para dizer: ‘Não somos racistas, não somos antimuçulmanos, sempre convivemos bem, o problema é a extrema direita’. Ninguém caiu nessa armadilha. Para você ter uma ideia de como há uma resistência aqui contra essa tentativas.
Então sempre me senti seguro, quero continuar a me sentir seguro. Em Berlim, no tempo em que vivi lá, me senti seguro; no estado de Massachusetts, quando eu estive na universidade de Harvard, me senti seguro; e eu quero que essa segurança para comunidade se estenda a mais gente.