A Justiça Federal, por meio de uma decisão liminar, autorizou que psicólogos fundamentalistas procedam a tratamentos de “cura” para homossexuais e bissexuais. Trata-se de uma afronta ao Estado Democrático de Direito e à cidadania de cidadãs e cidadãos LGBT, cujas vidas são marcadas por sofrimentos e discriminações.
Cabe a cada conselho de classe regular a forma de atuação dos seus profissionais. Não seria diferente com os psicólogos, cujo exercício profissional depende de regulamentações emanadas do Conselho Federal de Psicologia (CFP). Ao interpretar a Resolução n. 1/1999, do próprio CFP, a Justiça Federal, indiretamente, revogou a proibição de cura da homossexualidade, permitindo procedimentos que violam direitos e perpetuam discriminações contra lésbicas, gays e bissexuais.
Esta decisão foi proferida em uma Ação Popular proposta um grupo de psicólogos fundamentalistas contra o Conselho Federal de Psicologia, com o objetivo de obter declaração de inconstitucionalidade da referida Resolução. Alegaram, de modo resumido, que:
i) a referida resolução impede o desenvolvimento científico no Brasil;
ii) o Conselho Profissional de Psicologia utiliza a resolução para perseguir um grupo de profissionais que discorda dos termos do documento, e;
iii) vários profissionais da Psicologia respondem a processos éticos-disciplinares com base na referida resolução.
Nos últimos dias, a sociedade se mobilizou em discussões em torno do tema. Nas redes sociais, liam-se centenas de publicações que criticaram o posicionamento do magistrado. Houve, também, manifestações favoráveis à decisão que permite a “cura gay”. Em geral, estes são posicionamentos desprovidos de argumentações embasadas em conhecimentos técnicos e científicos, limitando-se somente a refutar a luta por igualdade de direitos para cidadãos LGBT. Deste modo, centram suas frágeis argumentações em crença dogmáticas e em preconceitos.
Aqueles que defendem a “cura gay”, a um só tempo, substituem conhecimentos científicos por crenças que não permitem reflexões críticas e violam o Estado Democrático de Direito, por impedir o pleno exercício dos direitos fundamentais previstos na Constituição, já que impõe tratamentos diferenciados e não autorizados pela legislação às lésbicas, gays e bissexuais. Ainda, desmerecem o atual momento delicado enfrentado por esta minoria social no Brasil. O registro de crimes contra pessoas LGBT continua subindo: a cada dois dias, ao menos uma pessoa morre por atos motivados pela sua orientação sexual ou identidade de gênero. No cenário internacional, o Brasil é o país que mais mata pessoas trans.
As pessoas LGBT sofrem intensas e infundadas discriminações que se iniciam no seio familiar, se estendendo às escolas, igrejas, locais de trabalho e à sociedade em geral. São agredidas (verbal, física e patrimonialmente), mortas com frequência (quando não se suicidam). Raramente seus agressores são identificados e punidos. A rede de suporte voltada à esta comunidade ainda é precária, sendo notória a carência de legislações específicas e de aparato estatal voltado à sua proteção, a exemplo de delegacias especializadas, centros de referência, empenho por força do Estado em apurar os crimes LGBTfóbicos, tolerância social à LGBTfobia e ignorância.
Nos últimos anos, a população LGBT tem enfrentado constantes ameaças de retrocessos a direitos garantidos através de entendimentos da Corte Suprema (ainda não assegurados em lei). É alarmante o crescimento das bancadas religiosas fundamentalistas no Senado Federal e na Câmara dos Deputados, assim como nas Assembleias Legislativas espalhadas por todo o Brasil, que atuam para aprovar leis que limitam direitos de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (a exemplo do PL 6583/13 – Estatuto da Família, PDC 395/2016, PL 70/1995, PDC 17/2015, PDC 16/2015, PL 5069/2013, PL 198/2015).
É entendimento unânime por todos os organismos nacionais e internacionais que regulam questões atinentes à saúde pública, há décadas, que a orientação sexual das pessoas não se constitui como doença. Ainda assim, ante toda esta dura realidade enfrentada pela população LGBT brasileira, deparamo-nos com posicionamentos judiciais que representam efetivo retrocesso do Estado Democrático de Direito e violação aos direitos fundamentais de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais.
A decisão que autorizou a “cura gay” carece de fundamentação e embasamento científico, uma vez que o magistrado não tem competência técnica para análises no campo próprio da psicologia, ao tempo em que não despreza saberes formulados por especialistas da área. Ainda, interferiu em Resolução de conselho de classe, única instituição autorizada a regulamentar o exercício da profissão de psicólogos e psicólogas. Também, abre espaço para que o mercado da chamada “cura gay” floresça, colocando em risco, especialmente, a dignidade humana de pessoas LGBT que virão a ser instadas a frequentar tais espaços por familiares que discordem de sua orientação sexual.
A Justiça brasileira possui a responsabilidade primária de assegurar a efetiva concretização dos direitos fundamentais de todas as pessoas. Qualquer iniciativa que desvirtue os caminhos para a consolidação de uma sociedade justa e livre de todos os preconceitos deve ser plenamente repudiada! Em jogo, não apenas a afirmação da cidadania de milhares de lésbicas, gays, bissexuais (e mesmo travestis e transexuais), mas a própria preservação do Estado Democrático de Direito – seus ideais de promoção da igualdade e proteção à dignidade humana!
Os autores:
Filipe de Campos Garbelotto, advogado, mestre em cultura e sociedade pela UFBA, Presidente da Comissão da diversidade sexual e enfrentamento à homofobia da OAB BA, membro da comissão especial de diversidade sexual e de gênero do Conselho Federal da OAB.
Dimitri Sales, Advogado, Doutor em Direito. Presidente do Instituto Latino Americano de Direitos Humanos. Ex-Coordenador de Políticas para a Diversidade Sexual do Estado de São Paulo.