Invisíveis para os censos oficiais, as pessoas trans e suas participações no mercado de trabalho só são contabilizadas por organizações criadas por elas mesmas. De acordo com a RedeTrans (Rede Nacional de Pessoas Trans do Brasil), 82% das mulheres transexuais e travestis abandonam a escola antes de concluir o ensino médio. Ainda de acordo com a instituição, 90% acabam na prostituição. Homens trans, por sua vez, acabam se submetendo a subempregos. A Articulação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) estima que 90% das pessoas trans trabalhem como profissionais do sexo. Tudo resultado, basicamente, de discriminação transfóbica e desamparo da família.

Conheça as experiências de algumas pessoas trans no mercado de trabalho:

Tito defende a liberdade do corpo Foto: Imas Pareira

Tito Carvalhal já foi preterido em vagas de estágio por ser um homem trans (Foto: Imas Pereira/Divulgação)

Tito Carvalhal, 31, estudante de pedagogia

“Estou desempregado, atualmente sou bolsista de um projeto da Universidade sobre educação pública e desigualdade social. Sempre busco estágios na área de educação, mas quando eu me apresento e peço o uso do nome social, a vaga desaparece. Numa seleção, passei pelas etapas de análise curricular, prova, tive pontuação boa e fui pra a dinâmica de grupo. Lá, todas as outras pessoas eram mulheres. Não falei sobre nome social, resolvi esperar pelo momento da contratação justamente para não ficar achando que tudo é transfobia. Vai que não eram razões profissionais? Todas as meninas me tratavam no masculino e a psicóloga corrigia, mas eu não falava nada, ficava na minha. Achei q tinha me saído muito bem, conversei com as colegas e elas acharam o mesmo, mas não rolou. O assunto que caiu na dinâmica foi um que eu gosto muito de estudar.

Numa outra vez, numa seleção de estágio na área pública, havia muitas vagas e poucos candidatos. Passei por tudo, fui aprovado e até havia escolhido na lista de escolas disponíveis aquela na qual eu gostaria de trabalhar. Eu queria muito estagiar nesse projeto. Saí de lá achando que tava tudo certo, e no dia seguinte, quando cheguei com a documentação e pedi pra usar o nome social, a pessoa disse que não podia. Falei do decreto, apresentei ele e chamaram o coordenador. Ele também disse que não havia possibilidade e pediu para eu ter calma e aguardar contato. Até hoje não me contactaram. Voltei lá querendo saber e falaram que as vagas tinham sido extintas. E eu sei que sobraram muitas vagas nesse projeto. Muitos colegas trabalharam nele e comentaram que tinha muita vaga sobrando e poucas pessoas querendo atuar nele porque a bolsa era pequena para a quantidade de trabalho. E nem esse trabalho eu consegui.

Isso não é uma coisa localizada em mim, é algo que acontece com a maioria das pessoas trans e travestis. A maioria relata isso. Tenho amigas trans graduadas e até com pós-graduação que estão desempregadas. Uma das coisas que costumam dizer é que trans não são pessoas capacitadas, mas mesmo aquelas capacitadas não conseguem nada. Estamos lutando pelo direito de ser explorados pelo mercado de trabalho. Olhe que bizarro!”.

Sellena

SellenaRamos trabalha como auxiliar administrativa numa faculdade de Salvador (Foto: acervo pessoal)

Sellena Ramos, 24 anos, auxiliar administrativa

“Eu trabalhava num mercadinho que pertencia ao meu cunhado. Hoje trabalho na Facudlade Baiana de Direito. A instituição tinha oferecido vagas direcionadas para pessoas trans. Meu currículo não foi selecionado, eu achei estranho e fui lá questionar. Aí descobri que inúmeras pessoas cis mandaram currículo e quem selecionou não tinha condições de saber quem era trans de fato só pelo currículo. Aí demorou um pouco e fui chamada, eu fazia monitoria de turmas e assistia professores que chegavam de fora. Fui trabalhando normalmente, participei da campanha do nome verdadeiro e fui ganhando espaço. Desenvolvi um projeto, levei a proposta pros diretores e eles gostaram. Estou elaborando um projeto de diálogo para funcionários e comunidade acadêmica, uma capacitação para as pessoas entenderem quais formas de tratamento são legais para pessoas trans, o que ofende ou não, e orientações para saber como atender caso chegue uma demanda. Hoje trabalho com carteira assinada, dentro do Núcleo de Pós-graduação da faculdade. Sou muito respeitada pelas minhas colegas e por todos de lá.

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Quero continuar trabalhando para um dia ter a minha casa própria, pois hoje moro de aluguel e isso é meio incerto. Vejo inúmeras pessoas trans que vivem na rua e tento aproveitar ao máximo as mínimas oportunidades que tenho, de ocupar todos os lugares que posso. Quero poder sobreviver dentro desse sistema que é excludente e não está apropriado pra nos receber. É preciso criatividade, malemolência e humildade de chegar no espaços.”

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Beto Chastinet é licenciado em história e já atuou como professor em escola pública (Foto: Imas Pereira/Divulgação)

Bento Chastinet, 24, licenciado em história

“Eu trabalhava numa escola pública, dava aulas de Filosofia. Não era trans assumido, os alunos achavam que eu era cis. Um dia, eu estava escrevendo algo no quadro, de costas, e por algum motivo parte do meu binder (faixa que pressiona os seios para dar aparência masculinizada) ficou com um pedaço exposto. Foi o suficiente para gerar um rebuliço e uma garota chegar perto e tocar nele, perguntando do que se tratava e fazendo comentários. Foi horrível, me senti exposto, muito mal. No intervalo, na sala dos professores, só conseguia chorar. A postura dos meus colegas foi excelente, eles me apoiaram. A coordenação passou na sala depois, pra conversar com os alunos sobre o assunto.”

Ayana Vitória é maquiadora, drag queen e profissional do sexo (Foto: Imas Pereira/Divulgação)

Ayana Vitória é maquiadora, drag queen e profissional do sexo (Foto: Imas Pereira/Divulgação)

Ayana Vitória, 34, maquiadora, drag queen e profissional do sexo

“Não sou bem uma mulher trans ainda. Digo que sou uma mulher que veio no corpo de um menino. Sou maquiadora e drag queen há 12 anos e nas apresentações uso o nome de Eyshilla Butterfly. Na maquiagem, muitas vezes, tenho que usar meu nome masculino, pois à  s vezes ainda tem muito preconceito. Já trabalhei num salão de beleza em Alphaville. Eles queriam um maquiador, então fui com meu cabelo preso para trás, usando um boné para disfarçar. Depois da conversa, a dona me pediu para eu cortar o cabelo, senão não tinha condições de trabalhar com eles. Acabei entrando lá como serviços gerais e fui crescendo, aprendendo a maquiar. No fim, até a dona do salão eu maquiava. Sempre como homem, não como Ayana. Ela sabia de tudo, mas não queria que eu fosse trabalhar como Ayana. A mesma pessoa que te beija hoje, te aponta amanhã. É muito difícil trabalhar com seres humanos. Hoje eu trabalho por conta própria. Fui maquiar uma noiva, mas ela não queria que eu estivesse lá como mulher. É chato, as pessoas tem que viver como acham melhor.

Também trabalho como profissional do sexo, uso meu nome mesmo, Ayana Vitória. Na época que comecei eu não tinha como arrumar trabalho, foi difícil, só via portas fechadas. Me prostituo no mesmo lugar tem 10 anos. Todas as meninas da minha época de começo já foram embora, morreram, foram marcadas por bandidos ou se envolveram com drogas. Fico sempre na região da Sete Portas, Via Expressa, Heitor Dias. Tem várias outras travestis também lá. É um lugar muito obscuro, é tipo uma cracolândia. É muito perigoso e horrível. Às vezes paro e penso: ‘o que eu tô fazendo aqui?’ Quase conclui o ensino médio, faltou pouco no terceiro ano. Fiz um bode, cheguei a entrar na faculdade de publicidade, mas eles descobriram e tive que sair.

Há uns 7 ou 8 anos fui capa de jornal porque me agrediram pesado na Sete Portas. Me bateram com pedradas no rosto, foi um trauma. Meu globo ocular saltou, foi horrível. Isso me doeu muito porque sou muito vaidosa. Racharam meu corpo, meu rosto, me arrastaram e me jogaram numa lata de lixo. Uma pessoa passou, viu e me levou pro médico. Meu rosto ficou deformado, até usaram a foto na Parada Gay de Salvador. Hoje ainda tenho sequelas. A visão sempre dói, meu osso partiu. É só tocar pra sentir. Perdi meus dentes do fundo, sinto dores de cabeça até hoje.

Se eu conseguisse um emprego bom de maquiadora seria muito melhor. Depois que concorri em concursos de artistas LGBT surgiram trabalhos como maquiadora. Mas as pessoas exigem demais e pagam pouco. Essa noiva que maquiei pra um ensaio fotográfico, ganhei só R$ 80. Mesmo assim, seria melhor isso sempre do que perder noite, me desgastar… Como eu tomo conta de minha mãe idosa, tento me expor o menos possível, me resguardar. Moro com meus pais e eles sabem do meu trabalho. Só minha avó que não, ela acha que é só fazer show. Mas minhas tias sabem e meu pai também. Não nego a ninguém.

 

27 de janeiro de 2017

“A gente luta pelo direito de ser explorado pelo mercado de trabalho”

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