Quando nasceu, o filho da cantora Gretchen foi identificado como pertencente ao gênero feminino. Entretanto, ao crescer, Thammy Miranda mostrou que tem identificação com o gênero masculino. Desde então passa por um processo transexualizador que engloba tratamento com hormônios e até cirurgias para adequação do corpo biológico à identidade. Thammy, que é chamado de homem trans, não está sozinho nesse processo.
Dados divulgados pelo Ministério da Saúde, em função do Dia Nacional da Visibilidade Trans que se celebra neste domingo (29), indicam que o atendimento ambulatorial para pessoas transgêneras no Brasil teve um aumento de 32% entre 2015 e 2016. No ano passado, foram feitas 4.467 consultas. Já em 2015 foram 3.388. As mudanças corporais através de cirurgia de redesignação sexual (popularmente chamada de mudança de sexo) também tiveram um crescimento: 34 pessoas fizeram o procedimento em 2016 contra 23 em 2015.
E para ser uma pessoa trans precisa fazer cirurgia? A médica endocrinologista Luciana Barros Oliveira, que está à frente do projeto de criação do ambulatório transexualizador do Hospital Universitário Professor Edgard Santos (Hupes), explica que a pessoa transexual não precisa necessariamente passar por procedimentos cirúrgicos para ter sua identidade definida como homem trans, mulher trans ou travesti.
Essa é uma área de estudos que tem muita mudança. Se você pegar as definições tradicionais a transexualidade é uma questão de reconhecimento de identidade e teoricamente indicaria a obrigatoriedade de fazer cirurgias. Mas, nos entendimentos de hoje, uma pessoa que se identifique com o gênero oposto ao que foi identificada ao nascer é transexual mesmo que não faça nenhuma cirurgia. Contudo, a maior parte das pessoas trans e travestis fazem o acompanhamento hormonal, ressalta.
Por cinco anos, a trans feminina Paulett Furacão juntou silenciosamente dinheiro para realizar o sonho de poder se olhar no espelho e se enxergar como realmente ela é. Foram R$ 10 mil, reunidos com muito sacrifício, para fazer a cirurgia de adequação de gênero nas mamas. Quando me olhei no espelho nem acreditei de tanta emoção. Sinto que o espírito está voltando para o corpo, conta Paulett, que é do bairro do Nordeste de Amaralina, em Salvador.
Estudante de pedagogia e homem trans, Tito Carvalhal ressalta que há muitas polêmicas e questionamentos envolvendo as cirurgias para pessoas trans por pressões da sociedade. A gente escuta os mais diversos discursos sobre isso. Quando você fala que quer fazer intervenção e se hormonizar as pessoas vêm com um discurso camuflado de cuidado com a saúde dizendo que pode ser arrepender e que é uma mutilação do corpo. Mas, ao mesmo tempo uma pessoa cis (que se identifica com o gênero atribuído ao nascer) pode fazer qualquer alteração no corpo que é super de boa.
Processo transexualizador
De acordo com o psiquiatra Alexandre Saadeh, coordenador do Ambulatório de Transtornos de Identidade de Gênero e Orientação Sexual do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas (HC) em São Paulo, a chamada transição é a mudança pela qual a pessoa trans passa. O final do processo pode ser, em alguns casos, a cirurgia de transgenitalização ou redesignação sexual. Não tem diferença no tempo de tratamento e acompanhamento entre homem e mulher trans. O conselho Federal de medicina tem uma resolução e a portaria do Sistema Único de Saúde (SUS) estabelece o acompanhamento por, no mínimo, dois anos antes de liberar a pessoa para fazer a cirurgias [pagas pelo ministério]. É muito raro o paciente ficar só dois anos e ir para cirurgia. Geralmente, pelo restrito número de acontecimentos cirúrgico, as pessoas esperam 5 ou 10 anos. O número é muito pequeno. No estado de São Paulo são 24 novas cirurgias por ano. E a gente tem uma fila de quase 600 pacientes.
Apesar do SUS oferecer as cirurgias só há 9 ambulatórios no Brasil onde são feitos os procedimentos o que leva muitas pessoas trans à clandestinidade e riscos durante os procedimentos. Eu injetei silicone industrial no meu corpo durante muitos anos de forma clandestina. Infelizmente não tive dinheiro para fazer isso de forma assistida por um profissional e acabei ficando com várias complicações. Eu sobrevivi, mas tenho várias amigas que morreram tentando deixar o corpo do jeito que elas queriam”, conta uma travesti, que prefere não ter o nome divulgado.
Solidariedade
As amigas Veridiana Melo Ribeiro e Cibelle de Oliveira Montini fizeram, nos anos 2000, a cirurgia de redesignação sexual [popularmente conhecida como mudança de sexo]. Desde então elas são sempre acionadas por outras mulheres que desejam fazer o mesmo procedimento. Motivadas pelo tempo de espera na fila para conclusão do procedimento – em alguns casos até dez anos – elas tiveram a ideia de criar um grupo para ajudar a realização do sonho da cirurgia.
Chamado de Mulheres do Terceiro Milênio (MTM), o grupo que está no Facebook organizou um bolão, arrecadou R$ 45 mil e realizará, em fevereiro, o sonho da cabeleireira Luciana Moraes, de 28 anos. Ela viajará para a Tailândia para realizar a cirurgia. “Comecei minha transição com 22 anos mas sempre fui Luciana. Quando se nasce não é uma escolha ser quem a gente é. Abri mão de muitas coisas para poder ser livre e feliz”, conta Luciana, que atualmente mora em Osasco, no interior de São Paulo.
Luciana diz que a cirurgia servirá para ‘adequar o corpo à alma’. “Eu esperava por esse momento há alguns anos e graças à união das meninas do MTM. Vou poder ter corpo alma e mente em sintonia e também em harmonia. Já faço parte do grupo há três anos e mais do que o bolão lá também tem muita troca de experiências das meninas que já passaram ou que querem passar pela cirurgia. Veridiana, uma das organizadoras do grupo ressalta que a CRS não se trata de estética, mas sim de extrema necessidade para essas mulheres que sofrem muito por essa desarmonia do corpo com a mente.
Patologização
Atualmente, o Conselho Federal de Medicina estipula 18 anos de idade com mínima para hormonioterapia (ou hormonização, como alguns profissionais preferem chamar) e 21 anos para realizar qualquer cirurgia. Diferente dos homossexuais, em geral, as pessoas trans buscam a medicina para mudanças.
O diagnóstico da mudança é fundamental. Muitos movimentos sociais falam que diagnostico é ligado à doença. Mas não é necessariamente assim. Para qualquer intervenção em medicina é necessário diagnóstico. No diagnóstico “ o Cadastro Internacional de Doença (CID)- está dentro da psiquiatria. Na classificação psiquiátrica americana está como disforia de gênero. Porque nós, psiquiatras, temos mais proximidade com a sexualidade humana e um olhar mais apurado para diferenciar a transexualidade propriamente dita. Nunca foi visto como uma doença. Está dentro do manual, do catálogo, mas não necessariamente é uma doença, como tantas outras variações que estão lá dentro. É o caso, por exemplo, do transtorno de personalidade e das questões de desenvolvimento infantil: não são doenças, são variações, assim como a transexualidade, opina Saadeh.
No caso do homem trans, a principal cirurgia é a mastectomia masculinizadora. A retirada de órgãos internos pode ser importante por conta dos hormônios. Já a neofaloplastia, que é a cirurgia de construção do novo pênis e é feita normalmente de forma experimental. Já nas mulheres trans, as mais comuns são as plásticas mamárias, inclusão da prótese de silicone e a tireoplastia (cirurgia que permite a mudança no timbre da voz).
Atendimento público
Em nota, o MS informou que ampliou a assistência para a população trans e travesti em todo Brasil, com a habilitação de quatro novos serviços ambulatoriais em janeiro deste ano. Com isso, o Brasil passou a contar com nove centros que ofertam procedimentos como terapia hormonal e acompanhamento dos usuários em consultas e no pré e pós-operatório. Dos nove centros, cinco oferecem cirurgia de redesignação sexual, chamada popularmente de mudança de sexo.
O SUS realiza desde 2008 cirurgias de redesignação sexual (portaria GM/MS nº 1.707, de 18 de agosto de 2008) para a população transexual. O processo de transexualização envolve uma série de procedimentos de saúde que vão desde acompanhamento psicológico, terapia hormonal até a cirurgia em si, se o paciente desejar fazer, informou o MS, em nota enviada ao Me Salte.
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Desafios do serviço
Coordenador da promoção da equidade e saúde da Diretoria de Gestão do Cuidado da Secretaria da Saúde do Estado da Bahia (Sesab), Antônio da Purificação, explica que o ambulatório transexualizador em Salvador – que tinha previsão de entrar em operação no final do ano passado – só deve ficar pronto em março para atender à s diretrizes e exigências do Ministério da Saúde (MS).
O laboratório funcionará no Complexo Hospitalar Professor Edgard Santos (Hupes) da Universidade Federal da Bahia (UFBA), que recebeu em outubro do ano passado, a autorização da Sesab para se habilitar para fazer os atendimentos. Na próxima semana vamos apresentar para o MS a última das exigências que eles pediram que é a de criar um fluxo de atendimento para a população trans – homens e mulheres – e travestis de todo estado. Tudo indica que teremos um esquema de marcação que as pessoas do interior do estado não precisarão vir para Salvador para marcar as consultas e atendimentos, explica Antônio.
A habilitação do Hupes é para fazer todas as cirurgias possíveis em pessoas trans e travestis. Vai ter uma fila e um processo de regulação. Está sendo estudado que outros hospitais do estado também possam fazer essas cirurgias, adianta Antônio. Ele explica que, depois de instalado o laboratório, as pessoas já poderão fazer as reposições hormonais, mas quem pretender fazer cirurgias terá que esperar um pouco. Pelas diretrizes do MS quem quiser fazer qualquer tipo de cirurgia (ver ilustração) deve seguir um protocolo clínico que exige um acompanhamento de dois anos, ressalta.
Esse ponto da norma do MS é questionado por organizações e movimentos sociais pois, para a liberação da cirurgia pelo Sistema Único de Saúde (SUS) é exigido que haja um Código Internacional de Doença (CID) que classifica a transexualidade como transexualismo e identifica como sendo um transtorno psiquiátrico. Segundo o técnico da Sesab, atualmente, há um atendimento ambulatorial em Salvador que funciona como assistência aos tratamentos hormonais. O atendimento acontece no Centro Especializado em Diagnóstico, Assistência e Pesquisa (Cedap), no Garcia, e oferece além do tratamento hormonal o serviço social, médico, psicológico e endocrinologista.
Cuidar para acolher
Responsável pelo projeto-piloto que oferece atendimento clínico e gratuito a transexuais e travestis no 14º Centro de Saúde Mário Andréa, nas Sete Portas, o médico Fernando Meira ressalta que muitos profissionais de saúde não têm tato para lidar com pessoas que não sigam a lógica binária estabelecida pela sociedade, o que prejudica os cuidados dessas pessoas e acesso à saúde.
Hoje existe a classificação internacional de doenças que ainda usa o termno trasnsexualismo como sinônimo de transtrornos psiquiátricos. os movimentos sociais lutam para despatologizar o termo. A sugestão é trocar o uso de transexualismo e colocar outras identidades de gênero no capítulo do código que fala de ˜outras condições de saúde™. Com relação aos cuidados de saúde, fazendo uma comparação a transexualidade é como se fosse uma pessoa grávida. Não é uma doença, mas exige cuidados específicos, esclarece.
Para oferecer um atendimento humanizado e especializado à s pessoas trans e travestis, Fernando é o responsável pelo projeto Atendimento Clínico Transaúde que atende trans e travestis todas à s sextas-feiras. Oferecemos na estrutura do posto, com uma estagiária de Psicologia rodas de conversa e encontros entre pessoas trans e travestis. Além disso, há o atendimento clínico no nível da atenção básica. A maioria das demandas são para orientações de usos de hormônios, avaliações pós-operatórias, procedimentos ginecológicos para homens e mulheres trans além de travestis. As marcações são feitas através do e-mail: atendimentoclinicotransaude@gmail.com
Veja abaixo a lista dos lugares no Brasil que atualmente estão habilitados para realizar os atendimentos ambulatoriais. Segundo o Ministério da Saúde os atendimentos nesses locais são para qualquer pessoa de qualquer estado do Brasil.
Porto Alegre
Endereço:Â Hospital de Clínicas de Porto Alegre – Universidade Federal do Rio Grande do Sul/ Porto Alegre (RS) – Atendimento ambulatorial e hospitalar. Â Telefone: (51) 3308-6000
Rio de Janeiro
Endereço: Universidade Estadual do Rio de Janeiro – HUPE Hospital Universitário Pedro Ernesto/ Rio de Janeiro (RJ). Atendimento ambulatorial e hospitalar. Telefone: (21) 2868-8000
São Paulo
Endereço:Â Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina FMUSP/Fundação Faculdade de Medicina MECMPAS “ São Paulo/SP – Atendimento ambulatorial e hospitalar. Telefone:Â (11) 3061-7000
Goiânia
Endereço: Hospital das Clinicas – Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Goiás/ Goiânia (GO) – Atendimento ambulatorial e hospitalar. Telefone:Â (62) 3269-8200
Recife
Hospital das Clínicas/Universidade Federal de Pernambuco/Recife/PE – Atendimento ambulatorial e  hospitalar. Telefone: (81) 2126-3633
Rio de Janeiro
Instituto Estadual de Diabetes e Endocrinologia (IEDE) – atendimento ambulatorial. Telefone:Â (21) 2332-7159
Uberlândia
Hospital das Clínicas de Uberlândia – atendimento ambulatorial. Telefone:Â (34) 3218-2111
São Paulo
Centro de Referência e Treinamento (CRT) DST/AIDS – Telefone (11) 5087-9911
Curitiba -Â Centro de Pesquisa e Atendimento para Travestis e Transexuais (CPATT) do Centro Regional de Especialidades (CRE) Metropolitano- atendimento ambulatorial