Por Andréa Magnoni*
Z: Mas eu sou sua mãe, te lavei quando você era pequena… você é mulher!
R: Não sou mãe, eu sou homem, me sinto homem!
Quando minha mãe lembrou desse diálogo travado entre minha avó e meu tio lá nos idos de 73, o pano caiu e deixou à mostra uma história que tinha tudo para ficar enterrada junto com ele… mas eu resolvi abrir a caixa de Pandora e meu tio Renato saiu do armário postumamente.
Eu já pesquisava a transgeneridade, sempre mexeu muito comigo, assim como a história dessa provável tia lésbica que se envenenara por um amor não correspondido. Dizia-se haver uma carta de despedida, o que não se falava é que ele já bradava aos 4 cantos que se chamava Renato e que assinou a tal carta assim. Dizia-se que ele se vestia e bebia como os irmãos homens, só não se contou que ele teve as roupas íntimas retiradas num momento de embriaguez, para se verificar se estava nascendo um pênis no lugar da vagina, de tanto que ele dizia ser homem. Dizia-se que ele era calado, só não disseram que ele perdeu a voz um mês antes de sua morte e que em seu velório um conhecido disse: Nesse caixão estão indo dois!. Esse homem sabia, mas não contou quem estuprou o meu tio, vilipêndio esse que o levou ao envenenamento.
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A carta de despedida tinha um último desejo: ser enterrado com roupas masculinas, mas o enterraram de noiva! E assim como viveu tendo seu gênero e nome verdadeiros negados, assim foi após sua morte. O interessante é que 20 anos depois, ao exumarem seu corpo não encontraram nem sinal do vestido branco, mas a roupa preta que havia sido dobrada e colocada dentro do caixão, estava intacta! Em sua lápide, além de seu nome verdadeiro faltou o epitáfio: Aqui jaz um homem!.
Eu e minhas primas abrimos as feridas transfóbicas da família, ganhei insultos de quem preferia que a história tivesse ficado no passado, mas optei por fazer disso poesia, exposições, palestras, ações, e até documentário com Susan Kalik rolou! Cores e Flores para Tita foi contemplado no edital Arte em Toda Parte da Fundação Gregório de Mattos e esteve em cartaz de maio a julho de 2016 no teatro homônimo; levamos também para Cuiabá/MT e Alagoinhas/BA e voltará em breve a Salvador no Aldeia Coletivo Cênico. O projeto e a exposição são um manifesto pela vida e um protesto contra o título de primeiro lugar em assassinatos de pessoas trans e travestis, que o Brasil tem.
Renato Magnoni esteve à frente de seu tempo, com apenas 15 anos em 1973, sofreu o que meninos e meninas trans sofrem até hoje simplesmente por serem quem são. Meu tio me tornou foto-ativista, me deu amigos e amigas muito especiais pelos quais luto incansavelmente. Nós cisgêneros somos em maior número, temos que ser escudo e não espada. Não existe imparcialidade nessa luta, quem não é a favor, tem sangue nas mãos mesmo em silêncio, pois o silêncio também mata.
*Andréa Magnoni tem 42 anos é foto-avista com ênfase em gênero, sexualidade, religião e cultura afrodiaspórica, feminista interseccional e filha de Yansã