Ele não vai voltar (Foto: Renata Drews)

Ele não vai voltar (Foto: Renata Drews)

A cobertura de um enterro nunca é fácil, muito menos desejada. A prática não agrada, para muitos jornalistas. Já para os parentes e amigos das vítimas, é unânime: a presença de repórteres desagrada. Isso se intensifica quando a morte não é natural ou é de um policial. Tensão, tristeza, intrusão e empatia são algumas das palavras que podem resumir o que senti na minha primeira cobertura de uma cerimônia fúnebre.

Assistir a dor do outro fere e causa desconforto, sobretudo quando olhares tortos e obrigações se cruzam, e demonstrar qualquer intenção ou feição é arriscado. Não há uma conduta exata a seguir, a única é o respeito. É ouvir, também, aquele velho conselho do professor da escolinha quando um colega se machuca e todos ficam ao redor da criança: “Não é bom ficar muita gente em cima, pessoal. Vamos nos afastar, deem espaço. Deixem o coleguinha respirar”.

Tensão

Faltava meia hora para às 11h. O velório estava marcado para começar assim que o relógio corresse os trinta minutos seguintes. Enquanto isso, tentávamos observar o ambiente de forma sutil para que não deixássemos evidente a nossa pretensão ali. Mas claro, para a nossa infelicidade, algumas pessoas entre os familiares já haviam reconhecido a repórter que eu estava acompanhando.

No dia anterior, ao tentar conversar com a irmã e com a – provável – mulher da vítima, a mesma jornalista fora recebida da pior forma possível. Sob ameaças, ela tentou investigar o máximo de informações enquanto estava no hospital onde o policial havia sido socorrido. Ela se desdobrou e, com coragem, foi até o local do assassinato que, com manchas avermelhadas, denunciava o ponto exato do crime.

Na manhã do funeral, por volta das 8h, quando eu e Roberta* fomos até o IML (Instituto Médico Legal) para apurar mais e observar a saída do caixão para o cemitério, a expectativa do reencontro com os parentes era de embate e tensão. Não distante disso: a troca de olhares, o apontar de dedos e a fuga para longe de nós evidenciou o desgosto em nos ver. Sem muitos avanços, decidimos partir.

Assim que chegamos no Campo Santo, um rapaz nos chamou: “Psiu, ei! Cuidado! Olhem o que eu estou dizendo! Não vão lá porque os nervos estão à flor da pele. A mulher ali já disse: olha lá, lá vem a desgraça!”. Essas foram as palavras de boas vindas. O conselho pelo qual, mais tarde, agradecemos.

Dor

Atenção redobrada e olhos bem abertos, tomamos a consciência de que nossa presença não deveria ser notada além do que já havia sido. Éramos indesejadas, éramos intrusas. Nossa ida indicava conflito. Apontava para uma ferida que poderia não cicatrizar. Por isso, tentamos nos manter à paisana, seguindo os conselhos de outro colega de profissão que também estava no local com a missão de cobrir o enterro.

Já sentados em um banco de concreto, recuados dos demais, nossos olhares se colocaram a decifrar as pessoas. Aguardamos inquietos. Foi então que gritos chacoalharam a minha alma: eram os lamentos da filha que perdera um pai querido, o qual não abriria a porta de casa naquela noite ao chegar do trabalho, não a abraçaria, não a colocaria para dormir e nem lhe contaria histórias.

O pai se fora e não seria mais capaz de segurar a mão de sua amada filha e reconfortá-la. Ver o futuro da menina foi algo tirado dele. Vê-la crescer, poder ensinar e estar presente nos momentos alegres e difíceis, eram desejos que foram sufocados.

“Meu pai, meu pai, meu pai! Meu pai era meu amigo e agora ele foi embora”, berrava a criança que suplicava pelo pai.

Empatia

Naquele momento, lembrei-me do meu velho, a pessoa que mais admiro neste mundo. Pensei na impossibilidade de viver sem ele. Pensei no quanto ele me faz bem, no quanto me ensinou, no quanto me confortou. Imaginei a dor que sentirei na sua perda, a ferida da sua ausência. Esta que eu sei que causará um buraco em meu peito.

Em um vai e vem de sensações, fui pega pela empatia e pela compaixão. Assistir a dor do outro causa uma sensação estranha. Por mais que exista o distanciamento e a impossibilidade de tomar partido, causa uma revolta e um desejo por justiça. Tudo bem, posso até não poder acreditar em nada, mas, antes de tudo, antes de qualquer profissão, somos humanos.

Acredito que para ser um bom jornalista devemos sim nos colocar no lugar do outro. Não é “apaixonar-se” pela fonte, não é abraçar uma temática que lhe agrada ou que faz parte de sua realidade. É abraçar uma causa maior, é defender um contexto abrangente. É se humanizar, é ter consciência do efeito do seu trabalho e da potencialidade que ele tem para causar uma mudança a curto ou longo prazo.

Questionamentos

Quando o enterro começou e todos se dirigiram para o fundo do cemitério, onde o corpo seria velado, uma multidão de pessoas nos forçou abrigo no final das escadas. A angústia e a tristeza do sepultamento de um desconhecido é uma experiência que não dá para relatar com precisão.

Eis a dúvida: até onde é permitido assistir à um funeral, que é algo particular e íntimo, para desse momento, extrair uma notícia? No entanto, eis uma outra questão: é um momento que dá a oportunidade de voz àqueles que não a tem, àqueles que sofrem. É fundamental investigar e informar, mas sempre se pergunte: qual a função de minha presença ali? Sua profissão tem uma finalidade, suas atitudes também devem ter.

Avalie qual é o papel do seu trabalho e corra atrás disso. É preciso repensar nossas práticas para, além de ter uma defesa em momentos de conflito, realizar algo que reflita na sociedade e que seja para um bem maior. O seu desconforto não pode ser motivo para fuga.

 

*Na história, o nome da repórter é fictício e os demais foram mantidos em sigilo para resguardar a identidade de todos. 

Renata Drews
Renata Drews
7º semestre na Fsba – Tem 22 anos com tamanho de 12! É uma canceriana que adora gentilezas, sorrisos sinceros e sonha em conhecer o mundo. Apaixonada pelo universo dos livros, pela moda, fotografia e por colagens. Pode ser inquieta e ansiosa mas o que a move é a sede por aprender e descobrir. Também é graduanda em Letras com Francês na Ufba.