A Primavera das Mulheres vai se estender além dessa estação. É que a série O Silêncio das Inocentes, publicada pelo CORREIO entre os dias 9 e 13 de dezembro, levou o Ministério Público da Bahia (MP-BA) a abrir um inquérito civil para investigar os casos de estupro em Salvador e a rede de atendimento à mulher no estado.
A instauração do inquérito foi anunciada no dia 14 de dezembro, pela promotora Márcia Teixeira, coordenadora do Grupo de Atuação em Defesa da Mulher (Gedem), durante audiência pública na sede do órgão.
A série O Silêncio das Inocentes levou o Ministério Público da Bahia (MP-BA) a abrir um inquérito civil para investigar os casos de estupro em Salvador e a rede de atendimento à mulher no estado
Cerca de 100 pessoas compareceram e mais de 350 assistiram à transmissão online do evento — convocado pelo MP-BA também a partir da série. O vídeo da audiência, na íntegra, também está disponível AQUI.
A promotora Márcia Teixeira explicou que, desde o início da publicação das reportagens, o MP instaurou um procedimento administrativo para coletar informação, que vai servir de base para o inquérito. “Com as informações que já coletamos até agora e que vamos seguir coletando através do que foi fornecido na audiência, buscaremos mais dados oficiais, por meio dos secretários estaduais e municipais”, explicou.
Segundo ela, o MP pode até entrar com ação na Justiça. “A série de reportagens trouxe muitas informações para que pudéssemos observar as dificuldades que a mulher tem ao percorrer esse caminho”, afirmou. “Vamos propor recomendações às instituições envolvidas para que se façam cumprir as normas técnicas, por exemplo, na saúde e na educação. Caso não aconteça administrativamente, vamos recorrer à Justiça”, disse.
A promotora afirmou ainda que a série O Silêncio das Inocentes motivou uma campanha que se tornará permanente no MP, com relação à divulgação da importância da denúncia e do acesso à rede de atendimento.
O diretor executivo do CORREIO, Sergio Costa, destacou, durante a audiência, a importância do trabalho jornalístico diferenciado e excepcional dentro de uma rotina de redação. “Os fatos do cotidiano acabam deixando temas importantes para trás. No contrafluxo desse cenário, o CORREIO direcionou o seu trabalho para um problema que é permanente, porque esse também é o papel do jornal: provocar reflexões”, afirmou Costa, durante o evento.
A série de reportagens trouxe muitas informações para que pudéssemos observar as dificuldades que a mulher tem ao percorrer esse caminho. Caso não ocorra administrativamente, vamos recorrer à Justiça
Os fatos do cotidiano acabam deixando temas importantes para trás. No contrafluxo desse cenário, o CORREIO direcionou o seu trabalho para um problema que é permanente. Esse também é o papel do jornal: provocar reflexões
Chega de Fiu Fiu
Durante a audiência, foi anunciada parceria do CORREIO com a campanha Chega de Fiu Fiu. A campanha, iniciativa da ONG Think Olga, permite a denúncia anônima de assédios e estupros e é uma das maiores referências do Brasil na luta contra a violência contra a mulher. O mapa reúne mais de 2,9 mil denúncias de assédio sexual no país, e pode ser acessado AQUI.
A coordenadora de comunicação da campanha, Luíse Bello, participou da mesa. “A ideia é reunir tudo em um lugar só, para mostrar que assédio existe. Sabemos que o CORREIO tem uma representação muito forte no Nordeste e essa é uma forma de deixar o mapa mais acessível”, explicou Luíse, que classificou a série como “delicada e, ao mesmo tempo, impactante”.
O CORREIO é o primeiro veículo de comunicação com quem a campanha realiza parceria. No mapa, que está no ar desde 2013, há relatos de vítimas de todo o Brasil. Em Salvador, há denúncias em cerca de 40 bairros, como Barra, Paripe, São Marcos e Cajazeiras.
O mapa veio após a campanha ter sido lançada pela jornalista Juliana de Faria. Depois de receber muitos depoimentos de assédio, elas criaram uma ferramenta que é, ao mesmo tempo, banco de dados e meio de combate.
Além da Chega de Fiu Fiu, o especial O Silêncio das Inocentes construiu seu próprio mapa: ele reúne 116 ocorrências de estupro registradas em 2015, em Salvador.
DISCUSSÃO
Foram mais de quatro horas de discussão sobre os problemas e os casos de violência sexual que fazem as mulheres vítimas de estupros. O delegado Adailton Adan, titular da 1ª Delegacia (Barris), lembrou que o passar dos tempos não acabou com a violência contra a mulher. “Ter a mulher como vítima da violência em qualquer situação nos faz remeter aos primórdios, quando os homens arrastavam as mulheres para dentro das cavernas para satisfazer as suas vontades. E hoje continuam arrastando”, comparou.
O grande desafio no momento, segundo a coordenadora do Viver, Dayse Dantas, é aproximar as vítimas do serviço. “Precisamos recuperar o contingente de pessoas. O trabalho que o Viver desempenha na Bahia é único. Precisamos unir forças”, afirmou. O Viver é o serviço responsável pelo acolhimento das vítimas de violência sexual.
Em sua exposição, o médico David Nunes, do Instituto de Perinatologia da Bahia (Iperba — instituição referência na Bahia para aborto legal), lembrou que o conceito de estupro se modificou ao longo dos anos, mas isso não facilitou a vida das vítimas que precisam recorrer ao aborto. “O conceito de violência contra a mulher tem sido mudado, mas o serviço ainda encontra algumas barreiras. A interrupção de uma gravidez não deve ser nunca uma política de governo, mas de Estado”, reforçou.
Ele citou como impedimentos questões administrativas, políticas, geográficas, falta de informação sobre a legislação — inclusive de parte dos próprios médicos, que muitas vezes não sabem como proceder em casos de aborto legal. Nunes sugeriu ainda que o prontuário médico possa ser incorporado no inquérito do crime.
As secretárias estadual e municipal de Política Para Mulheres, Olívia Santana e Mônica Kalile, a vereadora Kátia Alves e a promotora Isabel Adelaide também participaram da audiência.
Experiências
A audiência também foi o momento para que os jornalistas do CORREIO pudessem contar suas experiências durante a produção das reportagens. A repórter Thais Borges contou que se envolveu e se emocionou com as histórias que ouviu ao longo dos meses. Com o produto pronto, agora já percebe a importância e as reflexões causadas por seu trabalho.
“Nós somos fracos. Nos envolvemos. Choramos. Mas ficamos ainda mais chocados quando, depois que as matérias começaram a ser publicadas, pessoas conhecidas chegaram para nos dizer que já tinham sido estupradas”, contou. “Muitos também perguntaram como aguentamos fazer o trabalho, diante de tantas histórias trágicas. Mas a pergunta é feita para as pessoas erradas. Não somos nós, repórteres, que conseguimos qualquer coisa. Não somos nós que temos força sobrenatural para continuar vivendo”.
Para ela, é o momento de homens e mulheres se engajarem na luta contra o machismo. “Precisamos de um mundo que não seja dos homens azuis, nem das mulheres rosas. Precisamos de mundo lilás – o lilás da igualdade – onde não exista mais silêncio. Algumas pessoas falam que estamos vivendo uma Primavera das Mulheres, uma Primavera Feminista. Eu espero que não. Quero viver em um mundo que as quatro estações também sejam das mulheres”, afirmou a jornalista.
Muitos perguntaram como aguentamos fazer o trabalho, diante de tantas histórias trágicas. Mas a pergunta é feita para as pessoas erradas. Não somos nós, repórteres, que conseguimos qualquer coisa. Não somos nós que temos força sobrenatural para continuar vivendo