As frases que você ouve a cada instante são retiradas de relatos de mulheres estupradas. Gravadas por outras vozes, para preservar a maioria das vítimas, que não quis se identificar, mas são relatos reais. E não, você não tem como interrompê-las. Assim como as vítimas não podem interromper os estupros.


Frases como “não dá em nada”, “nada é feito”, “não há punição” foram uma constante nas entrevistas realizadas para esta série de reportagens. No caso de Moíra, 26 anos, está, sim, dando em algo. Só que, por enquanto, a punida é ela. Agredida duas vezes - uma, no estupro; outra, por denunciá-lo -, ela falou conosco. Por medo, não quis gravar depoimento, mas, a nosso pedido, escreveu uma carta como forma de registrar sua fala e, assim, quebrar o silêncio que está sendo obrigada a manter. Conheça sua história.

Quebra-cabeças

Para se conseguir condenar alguém, é preciso montar um imenso quebra-cabeças. Só que, quando o crime é o estupro, normalmente faltam peças. Resultado: a punição aos agressores é rara.

Não é nenhuma exclusividade da Bahia. Pelo contrário, a frustração de se ter estupradores em liberdade é uma realidade em todo o Brasil. E há vários motivos para isso: a ausência de testemunhas e de provas materiais, a falta de condições psicológicas da vítima para continuar com o processo, ou a descrença no Judiciário e na lentidão do processo. Sem contar com o machismo, ainda presente em cada etapa do caminho entre o estupro e a condenação.

Para se ter uma ideia, só no ano de 2014, foram ajuizadas no Tribunal de Justiça do Estado da Bahia (TJ-BA), 3.082 ações por estupro. Enquanto isso, no mesmo ano, 738 pessoas cumpriam pena por estupro em penitenciárias do estado. Considerando que esse universo inclui todos os presos, independente de há quanto tempo estão detidos, pode-se perceber que o número de condenações é mínimo diante do número de ações ajuizadas.
Na prática, as vítimas é que estão presas. Não numa prisão convencional, com grades, algemas, celas e uniformes laranjas. Ainda assim, privadas de liberdade. Na Casa Lar, abrigo localizado na Mata Escura, por exemplo, vivem 13 meninas vítimas de violência sexual. Mas a identidade delas precisa ser um segredo mantido a sete chaves — duas delas compartilharam suas histórias neste especial e as chamamos de Malu* e Valentina*.
A realidade é o oposto do que a lei determina. O artigo 130 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) estabelece “o afastamento do agressor da moradia comum” em hipótese de “maus-tratos, opressão ou abuso sexual impostos pelos pais ou responsáveis”. O ECA completou 25 anos sem alcançar esse sucesso. A verdade é que a maioria dos agressores continuam livres e as incomodadas é que tem que se mudar, literalmente

“As meninas são as vítimas e acabam ficando presas. A gente não diz ‘presas’ porque o abrigo dá tudo para elas. Mas elas saem dos lares delas e os agressores é que estão livres. Elas ficam até os 18 anos no abrigo, acabam criando a independência delas e nada é feito”, desabafa a assistente social Nívia Sacramento, que até há poucos meses trabalhava com meninas da Casa Lar.
Em nenhum dos 13 casos acompanhados no abrigo os agressores foram punidos. No Serviço Viver, da Secretaria de Segurança Pública da Baia (SSP-BA), que atende a vítimas de violência sexual, há cerca de 400 casos ativos – ou seja, o réu não foi condenado ou não está cumprindo a pena, o processo está em fase de recurso, aguardando audiência ou mesmo sem sentença. Os estupradores, portanto, também estão livres.

Sem testemunhas

Para a delegada Ana Crícia Macêdo, titular da Delegacia de Repressão a Crimes contra a Criança e o Adolescente (Derca), há uma peculiaridade em muitos dos processos relacionados a estupros: a falta de provas materiais, como armas, por exemplo, e de testemunhas. É a mesma dificuldade encontrada em praticamente todas as unidades. A titular da 3ª Delegacia (Bonfim), Ana Virgínia Paim, confirma. “A grande dificuldade é que você tem a vítima e o agressor, mas provavelmente não vai ter testemunha. Eu só me lembro de um caso, quando eu trabalhava no interior, que foi em via pública”, diz.
Além disso, como a maior parte dos casos acontece dentro do próprio ambiente familiar. E, nesses casos, quando a violência é denunciada — na maioria das vezes, quando a vítima chega à adolescência e ganha coragem para falar — já não há mais flagrante, o que impede expedir uma prisão preventiva. Assim, o estuprador só vai para a cadeia se o processo efetivamente chegar ao fim — e a sentença for condenatória.

A promotora da Infância e da Juventude do Ministério Público da Bahia (MP-BA), Ana Bernadete Andrade, lembra ainda que, nos casos de ambiente familiar, também não há testemunhas. “Ninguém violenta com testemunhas. Normalmente é uma relação da vítima com o agressor, muitas vezes sob ameaça”, aponta.
A advogada do Serviço Viver, Carolina Menezes, chama atenção para outro fator. “A maioria esmagadora dos casos é de agressores domésticos. São réus primários, que não têm antecedentes criminais. Então, nem o juiz nem o promotor têm elementos para manter esse cara preso”, diz ela, que ainda critica a lentidão da Justiça. "Historicamente, temos um Judiciário reconhecido pelo CNJ como o pior do país. O TJ-BA é o pior do Brasil em processos sem julgamento. Demora para julgar".

A desembargadora Nágila Brito reconhece que são muitos os casos em tramitação. "Para o nosso mal-estar. Parece que os homens continuam com aquela visão machista e sexista e patriarcal de superioridade do homem sobre a mulher. Mas, quando identifica o autor e o conjunto probatório tem consonância, normalmente se condena”, aponta.

Às vezes, porém, vítima e família não suportam o processo inteiro. “Muitas vezes, o processo se arrasta por dois, três anos. A família termina desistindo de acompanhar. A vítima quer esquecer, porque ela foi violada, todo mundo na redondeza sabe, ela vira motivo de chacota. Ela deu entrada na delegacia, leva esse processo até certo ponto e depois só quer esquecer. ‘Não quero mais ouvir isso. Olha aí, ó. Dois anos e não deu em nada. O que eu posso esperar dessa punição?’”, explica a coordenadora do Viver, Dayse Dantas.

Palavra da vítima vale mais

A psicóloga da Casa Lar, Nevidalva Santos, vai além na hipótese para a falta de punição. “A Justiça não faz nada porque é a palavra da menina contra a palavra dele (o agressor). Se não é flagrante, nada é feito. Há dificuldade também da mãe em admitir que o companheiro fez isso. Muitas vezes, eles usam o artificio de dizer que ela seduzia, que ela ficava nua na frente dele, que ficava de baby-doll”, exemplifica.

Uma solução para essa ‘batalha de testemunhos’ é o que já é adotado hoje pelo TJ-BA, com respaldo dos tribunais superiores: principalmente nos casos de estupro de vulnerável, a palavra da vítima tem valor superior às outras provas.
“Esses casos, na maioria das vezes, acontecem em quatro paredes. Ninguém viu, não tem testemunha. A gente dá esse valor maior à palavra da vítima, desde que guarde consonância com as outras provas”, diz a desembargadora Nágila Brito.

Ela é titular da Coordenadoria das Mulher em Situação de Violência do TJ-BA e conta que, quando chega a condenação por estupro, muitas vezes anos depois de o crime ter acontecido, o estuprador entra até mesmo com um pedido de revisão criminal — muitas vezes apresentando uma carta de retratação da vítima, na tentativa de sair impune. “Mas a violência não deixou de existir”, diz.
O prazo de prescrição do crime de estupro é de 20 anos. Antes de 2012, a contagem começava na data em que o estupro havia sido cometido. No entanto, com a aprovação da Lei 12.650/2012, conhecida também como Lei Joanna Maranhão, a contagem, começa somente quando a vítima, se for criança ou adolescente no momento do crime, completar 18 anos — com a única condição de que, até esta idade, não tenha sido proposta nenhuma ação penal.

Ou seja, antes se uma criança houvesse sido estuprada aos 5 anos de idade, o crime prescreveria quando ela completasse 25 anos. Com a nova lei, o crime só prescreveria quando ela completasse 38. O artigo 1º da Lei 12.650/2012 acrescenta um inciso ao artigo 111 do Código Penal de 1940.

Mudança na lei divide opiniões

A legislação que trata do crime de estupro sofreu algumas mudanças ao longo dos anos. Mas, de um modo geral, ela ainda se resume ao Código Penal de 1940. Ou seja, tem 75 anos.

Em 1990, por exemplo, o crime passou a ser considerado hediondo - ou seja, é inafiançável, não passível de anistia, graça ou indulto. Mas a principal alteração ocorreu em 2009, quando foi publicada a Lei 12.015. Ela ampliou o conceito de estupro e aumentou a pena para o crime.

Antes, existiam os crimes de estupro e atentado violento ao pudor. Para o primeiro crime, a pena variava de 3 a 8 anos de reclusão. Para o segundo, de 2 a 7 anos. Com a lei, todos os crimes enquadrados como atentado violento ao pudor passaram a ser considerados estupro — desde uma passada de mão, passando por um beijo forçado até a penetração, tanto em homens quanto em mulheres.

Além do conceito ampliado, o estupro passou a ter pena de 6 a 10 anos de prisão. No caso de vítima com idade entre 14 e 17 anos, a pena varia de 8 a 12 anos. E, contra menor de 14 anos, a pena sobe para 8 a 15 anos.
Seis anos após a mudança na legislação, especialistas ainda dividem opiniões sobre problemas e benefícios da alteração. O que todos concordam é que, enquanto antes a grande questão do estupro era que ele tirava a honra de alguém, após a alteração, a questão passou a ser, de fato, a violência cometida. Antes, o estupro se enquadrava em "crimes contra os costumes". Ou seja, a preocupação real era com os costumes da época, não com a violência. Agora, ele é enquadrado em "crimes contra a dignidade sexual".
 
 
“A nossa lei tinha intenção de controlar a população através do controle do comportamento sexual e a grande preocupação não era com os crimes que envolvessem violência física, mas a chamada violência presumida, porque tinha o controle da sexualidade feminina. A norma era não se envolver sexualmente com menor de 14 anos para garantir o controle sexual da mulher, que só teria relação sexual no casamento”, explica a historiadora Andréa Rodrigues, autora de estudo sobre crimes sexuais em Salvador entre 1940 e 1970.
Por outro lado, há quem discorde das mudanças. Uns acham que passou da conta. É o caso da delegada Vânia Matos, titular da Delegacia Especial de Atendimento à Mulher (Deam) de Periperi. “Acho que a mudança da lei levou a coisa para muito longe da realidade. Passou do ponto, foi muito além. Você não vai comparar um ato sexual feito a pulso com uma passagem de mão na bunda. Tinha que ter intermediários do ato libidinoso. Porque o ato libidinoso não tem a monstruosidade do estupro. O estupro é um ato monstruoso”, argumenta.

Já a delegada Ana Virgínia Paim, da 3ª Delegacia (Bonfim) consegue ver dois lados. “Primeiro, eu vejo um lado bom por criar um tipo penal que tem a melhor compreensão e que inclui homens e mulheres, agora é ‘pessoa’”, diz. Por outro lado, ela explica que, antes da mudança, era possível punir o agressor por mais de um crime. Por exemplo, se houvesse beijo na boca e penetração, seriam dois crimes: atentado violento ao pudor e estupro. “Hoje, tudo é um único crime, então independente do que ele venha a fazer com uma vítima, o crime é o mesmo”, completa.

A promotora Márcia Teixeira, coordenadora do Grupo de Atuação Especial em Defesa da Mulher (Gedem) do MP-BA, considera que a mudança foi um avanço. A desembargadora Nágila Brito, do TJ-BA, também considera a mudança benéfica, embora acredite que a nova definição dificulte um pouco o trabalho dos julgadores. “A pena base, se for estupro contra vulnerável, começa em oito anos. E, às vezes, não houve a conjunção carnal (penetração), houve o ato libidinoso, mas que agora está dentro do estupro. Então, ficam todos muito preocupados porque a pena ficou alta. Mas a gente não pode esquecer que a lesão não é só física, é uma lesão na alma”, diz a desembargadora.
O diretor do Instituto Médico Legal Nina Rodrigues (IML), Mário Câmara, critica o que chama de redução da pena. Para ele, a mudança tinha que ter acontecido, mas a pena precisaria ter ficado ainda maior do que os 15 anos, no máximo, já que, antes, o agressor poderia responder por crimes diferentes e ter as penas somadas. “A mulher era vítima de estupro, que era a conjunção carnal, vaginal, e era vítima de atentado violento ao pudor. Cada uma dessas coisas era um crime diferente, então iam somar as penas. Somava tudo, dava uma pena grande. Hoje não, a pena ficou menor”, critica.

Crimes na internet

 
 
O estupro não está apenas na rua – na internet, sites, blogs e postagens em redes sociais fazem apologia à violência sexual: são fotos, vídeos e até textos incentivando a prática do estupro. A Polícia Federal (PF) recebe denúncias e investiga casos, principalmente, envolvendo vítimas menores de 14 anos – considerados vulneráveis, de acordo com a lei.

“A Polícia Federal tem muito interesse nesses casos. A gente busca identificar as pessoas que, além de estarem divulgando essas imagens, estão criando o conteúdo. Se elas estão produzindo, é porque existe uma criança sendo abusada”, afirma o delegado André Rocha Gonçalves, chefe do Grupo de Repressão a Crimes Cibernéticos e da Delegacia de Defesa Institucional da PF.

Ainda segundo André, a Polícia Federal possui parceria com os Estados Unidos e com instituições no exterior que coletam o material pornográfico. “E a gente tem tido sucesso, na medida do possível. Se você divulga na internet, se tem no seu computador, é um crime. Hoje em dia o pessoal fica brincando de mandar nudes, mas só de fazer isso com uma criança de 12 anos já está cometendo o crime”, diz o delegado, referindo-se ao crime de pornografia infantil.
Esse tipo de crime está previsto no artigo 241 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). A pena para venda ou exposição à venda de imagens contendo cenas de sexo explícito envolvendo crianças e adolescentes varia de quatro a oito anos de prisão. Quem oferece, troca, disponibiliza, transmite, distribui ou publica conteúdo desse tipo pode ficar preso de três a seis anos. Quem adquire o material também pode ficar preso de um a quatro anos, segundo o ECA.

Para o diretor da ONG Safernet Brasil, Rodrigo Nejm, são muitos os casos que a organização acompanha, especialmente de incitação ao chamado “estupro corretivo de mulheres lésbicas”. “A gente tem que ter a noção de que incitação ao crime não é algo que pode ser tolerado, porque é uma violação de direitos humanos. A gente não pode usar a internet para esse tipo de situação”, diz.
“Denunciar é fundamental, mas compartilhar o conteúdo não ajuda. Você está dando audiência a esse tipo de criminoso

Rodrigo Nejm

Ele lembra que a expressão da liberdade sexual é um direito de todos, mas ressalta que é um conceito diferente da incitação à violência. Casos assim podem e devem ser denunciados, inclusive de forma anônima. Basta acessar o endereço www.denuncie.org.br e encaminhar o endereço da página onde há apologia à violência. O endereço será compartilhado automaticamente com a Polícia Federal e o Ministério Público Federal.
“Denunciar é fundamental, mas compartilhar o conteúdo não ajuda. Você está dando audiência a esse tipo de criminoso. É importante denunciar, apagar o conteúdo e não compartilhar. Compartilhe o canal de denúncia, compartilhe a sua indignação, compartilhe a sua causa, mas não compartilhe o conteúdo em si, porque tudo que os criminosos querem é audiência para o seu discurso de ódio, audiência para o seu discurso de intolerância”, declara.