O Cantor e compositor Ricardo Chaves escreveu, em seu site, um texto desabafando sobre os rumos que o Carnaval, do qual ele é um dos principias pilares, tomou. Leia na íntegra:
“Mais um carnaval chegou ao fim. Esse foi mais especial para mim por ter sido o de número 30 que participei. Depois de tantos anos comandando trios, tenho a preocupação de que, se nada for feito, o modelo que transformou nosso carnaval na maior festa do planeta pode estar com os seus dias contados.
O carnaval que se encerrou em Salvador perdeu totalmente o sentido que o transformou em uma manifestação popular de alcance internacional. O elemento mais importante da festa, até hoje, sempre foi o folião de rua. Por essa razão, Salvador passou a ser desejada, dentre outros motivos, por possuir um fantástico carnaval de rua.
O que vi de cima do trio esse an, foi mais uma festa indiscutivelmente grandiosa, comandada por grandes artistas de diversos estilos musicais, que movimentou economicamente a cidade, mas com cada vez menos apelo popular.
Só posso falar do circuito Barra/Ondina, que é o que tenho desfilado nos últimos dez anos. O que aconteceu por lá, no meu entender, passou do limite do que se possa chamar de razoável. Engarrafamentos e atrasos não são uma novidade dos dias atuais, eles sempre existiram. Esse foi, inclusive, o motivo do surgimento, no passado, de uma fila que, até hoje, ordena o desfile dos blocos.
Há alguns anos se fala que o carnaval de Salvador está privatizado pelos blocos. A minha opinião sempre foi divergente. Vejo os blocos como os grandes responsáveis pelo surgimento dos artistas que levaram a música das ruas de Salvador para o mundo. Nenhum de nós conseguiria chegar aonde chegou sem o apoio deles. Portanto, mesmo sabendo que muitos pensam diferente de mim, não acho os blocos de trio os vilões dessa história. Ainda defendo que continuam sendo fundamentais.
Para mim, o que hoje determina a desconfiguração do nosso carnaval é a dinâmica imposta à festa pela evolução dos camarotes. No desfile deste ano, apesar de algumas quebras de trios, a relação artista / camarote, foi a maior responsável pelo monumental atraso ocorrido. Ressalto que não sou contra a existência de camarotes, muito pelo contrário. Há 10 anos exploro um espaço aonde monto um. Esse ano funcionou lá o de minha amiga Claudia Leitte. Discordo é da maneira como eles estão interferindo na festa.
Atualmente, cada vez mais artistas se tornam donos ou parceiros de algum camarote. Até aí nada de errado, se esses espaços fizessem parte da festa de rua como uma opção para quem preferisse curtir com todos os confortos que eles oferecem.
Hoje, o fluxo do desfile está sendo ditado não mais pelos foliões das ruas. Cada artista, ao chegar em frente ao seu camarote, passa a fazer um show, quase que exclusivo, para os que lá estão, como se nada mais no circuito importasse. Alguns deles contam hoje com passarelas que transportam as atrações para dentro, onde as apresentações são feitas, sem levar em conta quem está nas ruas.
Fico me perguntando o que passa na cabeça de um folião que pagou por um abadá, é obrigado a ver o trio parar e esperar que o show exclusivo para o camarote aconteça. O grande barato de um trio elétrico é o fato dele ter rodas e acho que o que leva alguém a sair em um bloco é poder comprovar que atrás do trio elétrico só não vai quem já morreu. Um trio parado vira uma coisa sem a menor graça.
Imagino também o que pensa o folião pipoca que, atualmente, no circuito Barra / Ondina passou a não ter a menor importância. Se no camarote tiver gente, já basta.
O comportamento de meus amigos e colegas com relação a isso me preocupa. Apesar do atraso prejudicar a maioria, sinto um certo silêncio conveniente que me incomoda.
Esse ano teve apresentação exclusiva que durou quase uma hora. Acho inconcebível um trio elétrico parado por tanto tempo em um circuito que é para ser feito com ele andando. Enquanto uma minoria usufrui daquele momento, por vezes ocupado por discursos vazios e rasgações de seda sem a menor importância, milhares de pessoas ficam reféns da boa vontade de alguns que esqueceram que o carnaval de Salvador é uma festa de rua e deve ser feita prioritariamente para quem lá está.
A trilha sonora do carnaval já não saiu mais só das ruas. Os trios competem hoje com o som vindo de palcos montados em camarotes, o que aumenta o caos sonoro. Seria muito bom se os desfiles voltassem a ser feitos para todos. Para os foliões que pagam abadás, para o pessoal que fica na pipoca e para as pessoas que queiram assistir a festa de camarotes, varandas ou janelas. Os artistas que quiserem dar um “plus” a mais aos clientes dos seus camarotes, que acabem o desfile e voltem para lá. Aí sim, em um espaço privado, façam um show somente para quem estiver dentro. Outra alternativa é trocar o desfile da rua por shows em seus camarotes. O que não pode continuar a acontecer é a rua ser transformada em trampolim para apresentações dirigidas a uma minoria, sob pena de, nós, artistas que fomos fundamentais para tornar nossa festa tão cobiçada, sermos transformados nos verdadeiros vilões.
Sei que posso ser mal interpretado por alguns, mas nunca deixei de manifestar meus pensamentos. Não me excluo do problema. Muitas vezes, de cima do trio, me peguei cantando somente para o lado onde estão os camarotes. Apenas quero provocar na cabeça das pessoas uma reflexão. Já ficarei satisfeito se, no próximo ano, pelo menos algum artista, ao passar em frente a um camarote, lembrar que atrás do trio dele vem uma multidão que quer seguir em frente. Se nada for feito, correremos o risco de ouvir os nossos foliões dizerem os versos de um dos inúmeros sucessos do chicletão: “a fila andou, eu te falei, não deu valor, como eu te amei, agora chora, você já me perdeu, tou fora!!!”
Que venha 2012!
Ricardo Chaves
11 de março de 2011