SANGUE AMARGO

Alexandre Lyrio (alexandre.lyrio@redebahia.com.br)
Edvan Lessa (edvan.lessa@redebahia.com.br)
Juan Torres (juan.torres@redebahia.com.br)

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Casa em que Wiliam da Palma Queiroz foi assassinado, no bairro de Rio Sena, em Salvador, em novembro de 2013 (Foto: Edvan Lessa)

Wiliam da Palma Queiroz agredia a mãe aos 13 anos. Usava drogas e traficava. Foi apreendido duas vezes, passou por sete escolas até essa idade, não sabia escrever o próprio nome, nunca tirou o RG e não entendia quando alguém falava que um time estava jogando em casa. Os parentes do adolescente - assassinado dentro de casa em 28 de novembro do ano passado, em Rio Sena - acreditam que o homicídio resultou em um descanso para a família, em especial para aquela que o pôs no mundo.

No dia em que morreu, o seu amigo de baba Joaquim* seguia para mais uma partida quando viu cinco rapazes, segundo ele, adolescentes, no pequeno declive que dá para o imóvel de número 548. Todos estavam à espreita no casebre onde William morava com a mãe e o irmão, filho de outro pai. Na ocasião, disseram procurar o garoto para comprar drogas.
Era noite, cerca de 21h, quando os avós, que moram a algumas quadras, receberam a notícia do assassinato de Latró, como Wiliam era conhecido por causa de um suposto latrocínio praticado por ele. Joaquim já tinha percebido que o amigo que conhecia desde pequeno havia sido morto.

Naquele dia, a mãe do rapaz tinha dormido na casa de outro parente. Wiliam a agredira e a colocara para fora de casa horas antes da própria morte. “Ele sabia que ia morrer, por isso tirou ela de casa”, acredita um parentes.
Uma série de flagelos açoitou o garoto que, segundo a família, se envolveu com a criminalidade ao completar 10 anos. “O pai dele também era bandido e, quando o filho tinha 1 ano, arremessou ele contra a parede. Só não foi linchado pelos vizinhos porque não deixamos”, relembra outro parente.

O adolescente começou a aparecer com dinheiro suspeito, a andar no meio de traficantes. Foi baleado e, segundo contam os familiares, apanhou inúmeras vezes dos bandidos com quem andava e da própria polícia. No dia da morte, um tiro acertou a sua cabeça, e numa espécie de mensagem assombrosa, jogaram drogas sobre seu corpo.

A situação do irmão pequeno de Wiliam, que mora com a mãe, é delicada. Ela já precisou doar três de seus seis filhos para outras famílias e sobrevive de esmolas, venda ocasional de desinfetante e Bolsa Família numa casa de um vão, dividido por uma mureta. Além de Wiliam, outra filha também morreu, mas por problemas de saúde.

São mortos muito mais do que matam
O caso de William é um espelho de muitos adolescentes de Salvador. Em 2014, até novembro, segundo levantamento realizado pelo CORREIO usando dados do boletim diário da Secretaria da Segurança Pública (SSP), ocorreram 1.155 homicídios em Salvador. Desses, 334 aparecem sem idade identificada. Dos 821 que restam, em 83 (10%) as vítimas foram adolescentes entre 13 e 17 anos – sem contar quatro crianças, de 3, 4, 9 e 11 anos. Considerando essa proporção para o universo total de homicídios, são cerca de 115 adolescentes assassinados. Enquanto isso, nesse mesmo período, 19 adolescentes foram apreendidos na 2ª Vara da Infância e Juventude por cometerem homicídios na capital baiana.

O número de apreendidos por homicídios — embora não considere eventuais fugas e autorias não elucidadas — é seis vezes menor do que o número de adolescentes mortos.

Em contraponto, segundo as estatísticas de apreensões da 2ª Vara da Infância e Juventude, dos 2.146 atos infracionais cometidos por adolescentes em Salvador e algumas cidades próximas em 2013, 54 (2,52% do total de atos) foram homicídios. Não é possível fazer o cálculo exato de quanto esses homicídios representam do total, pois a 2ª Vara não tem o levantamento de quantos desses 54 homicídios foram cometidos especificamente na capital baiana, que registrou naquele ano 1.368 assassinatos, sendo cerca de 11,5% de adolescentes (aproximadamente 155 mortos entre 13 e 17 anos). Em 2012, os homicídios foram 3,9% de todos os delitos cometidos por adolescentes – 87 de 2.231 delitos.

O juiz Nelson do Amaral, responsável por levantar os dados de atos infracionais na 2ª Vara da Infância e Juventude, da qual é titular, afirma que, apesar de eles serem muito mais vítimas do que homicidas, a sociedade só enxerga os casos isolados porque eles ganham repercussão.

“Nos nossos registros de entradas de adolescentes, os homicídios nunca chegam a 4%. O problema é que casos isolados chamam mais atenção. Os casos comuns a sociedade não enxerga. Daí vem a generalização de que o jovem é violento e comete crimes graves”, diz Nelson do Amaral, que além de juiz é sociólogo e pedagogo. O campeão entre os atos infracionais cometidos por jovens em 2013 é o roubo. No total, foram 604 (28% dos 21 tipos infracionais cometidos).

Queda em crimes graves
Dados nacionais da Secretaria Nacional dos Direitos Humanos mostram que, entre 2002 e 2011, caiu a taxa dos adolescentes privados de liberdade em função de atos graves. Entre os jovens sentenciados para o regime fechado, a prática de homicídio caiu de 14,9% para 8,4%; latrocínio (roubo seguido de morte) caiu de 5,5% para 1,9% e estupro caiu de 3,3% para 1%. Em 2012, os índices praticamente se mantiveram.

“Isso ajuda a provar que os crimes mais graves não são cometidos por jovens. Então, é absurda a ideia de reduzir a maioridade penal ou de aumentar a pena dos jovens que têm sua liberdade privada”, afirma Fernanda Papa, coordenadora do Programa Juventude Viva, da Secretaria Nacional da Juventude, órgão ligado diretamente à Presidência da República.

Enquanto isso, estudo de 2010 do Observatório das Favelas, Unicef e Secretaria Nacional de Direitos Humanos, aponta Salvador como a segunda capital mais perigosa para adolescentes, com um índice de homicídios na adolescência (IHA) de 8,76 assassinatos por cada grupo de mil adolescentes. A capital baiana ficou atrás apenas de Maceió (taxa de 10,15). A média registrada no país naquele ano foi de 2,98, contra 2,61 em 2009 – ano em que Salvador tinha a maior taxa de homicídios de adolescentes no país, com 7,5 assassinatos por cada 1.000 indivíduos.

Fernanda Papa aponta também o que ela chama de “forte componente racista” nos assassinatos de jovens no país. “Quantos homicídios afetam a população branca? Só 7%. Quantos afetam os negros? O índice atinge 93%. Quer dizer, 93% de quem morre assassinado na Bahia é preto ou pardo. Aí a gente olha a taxa de homicídios de jovens. Entre jovens brancos é de 25/100 mil habitantes. Entre jovens negros é 104/100 mil habitantes. É quatro vezes maior”.

Um em cada dez adolescentes apreendidos é mulher
Raneliane Santos de Santana, 17 anos, segundo uma parente, traficava. Acabou assassinada na noite do dia 12 de fevereiro deste ano.

O crime aconteceu poucos dias depois de ela ter se mudado para o Alto de Coutos. Uma antiga vizinha, que preferiu não se identificar, disse que ela não tinha envolvimento com bandidos. No entanto, uma parente que a criou, cuja identidade será preservada, suspeita que a adolescente estivesse passando drogas do então namorado.

“Ela era uma menina amorosa com a avó, mas se misturou com uma camaradagem e conseguiu um namorado. A mãe não aceitou o relacionamento e ela foi morar de aluguel com o rapaz e outro casal. Três meses depois foi morta a mando de um traficante”, contou.

Para a promotora da Infância e Juventude Edna Sara Cerqueira, as mulheres que cometem atos infracionais entram para mostrar poder à comunidade. “Normalmente elas acompanham e se relacionam com alguém que comete o crime. Isso é status para ela. Claro, sempre há a questão do consumismo, de ganhar dinheiro para comprar roupas”, explica.

Raneliane presenciou a separação dos pais aos 14 e abandonou a escola na mesma época em que começou a namorar. No dia da sua morte, invadiram a casa onde ela estava e atiraram na cabeça, ombro, tórax e abdômen. À época, estava grávida de cinco meses do segundo filho. O mais velho, hoje com 2 anos, é criado pela avó, que tem mais cinco filhos e conta com a ajuda de familiares. “Como vamos evitar essas mortes? O que está acabando com a juventude é a droga. Os jovens não tomam os pais como exemplo”, analisou uma parente.

O CORREIO conseguiu contato com mais três famílias de adolescentes mortos. Porém, por medo de represálias ou fragilidade emocional de falar sobre o tema, elas não toparam conversar com a reportagem. * Nomes fictícios

Menos de 0,1% dos adolescentes está privado da liberdade. Proporção de adultos presos é quatro vezes maior
Em Salvador, a depender da gravidade e do potencial ofensivo do ato infracional, os jovens que recebem sentença de privação de liberdade vão para Comunidade de Acolhimento Socioeducativo (Case-Salvador), no bairro de Tancredo Neves. Mas os dados do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase) indicam que esses adolescentes não são tão numerosos como muita gente imagina.

O último levantamento nacional do Sinase, referente a 2012, mostra que naquele ano eram 20.532 adolescentes em restrição e privação de liberdade (internação, internação provisória e semiliberdade), e de 88.022 em meio aberto (prestação de serviços à comunidade e liberdade assistida).

Como a população de adolescentes do país (12 a 21 anos) soma cerca de 21 milhões de pessoas, a porcentagem de adolescente cumprindo medidas socioeducativas de restrição e privação de liberdade era de apenas 0,1% da população (ou 100 em cada 100 mil adolescentes). Já nos presídios brasileiros há 574 mil presos, de acordo com dados do Ministério da Justiça, o que corresponde a 0,4% da população adulta do país – uma taxa de 400 a cada 100 mil, quatro vezes maior do que a de adolescentes privados de liberdade.

“Isso já mostra que os adolescentes não são a principal ameaça à segurança pública no nosso país. É muito baixo o número de meninos que estão cumprindo medida socioeducativa. Quando alguém fala que a lei precisa ficar mais severa, que é preciso reduzir a maioridade... Definitivamente não!”, afirma Fernanda Papa, coordenadora do Programa Juventude Viva, da Secretaria Nacional da Juventude.

Entrevista: Fernanda Papa
Coordenadora do Programa Juventude Viva, da Secretaria Nacional da Juventude, órgão ligado diretamente à Presidência da República, Fernanda Papa é categórica em afirmar que o problema maior não é a violência cometida pelo jovem, mas os ambientes violentos nos quais eles costumam estar inseridos. E pior, do qual é vítima muitas vezes. Fernanda está à frente de um plano nacional de enfrentamento à violência contra a juventude negra. Na Bahia, o plano começou em 30 de Novembro de 2013. “Ainda estamos iniciando aí, um dos locais em que a população preta e pobre mais sofre”.

CORREIO: Os jovens estão cada vez mais envolvidos com a criminalidade ou isso é um mito?
Fernanda Papa - Quando a gente fala que cresce a violência atingindo a juventude não significa dizer que cresce a violência praticada pela juventude, mas que a juventude tem sido alvo de um ciclo de violência. Por que os jovens estão cada vez mais envolvidos com a criminalidade? Primeiro que a gente não pode assinar embaixo dessa afirmação. Quando você observa os dados, você vê na verdade que o problema não parte do jovem, mas sim recai sobre ele.

CORREIO: Por quê?
FP - A gente parte de uma constatação que vem dos diagnósticos e dados do sistema de informação sobre mortalidade. Quando a gente olha o número de homicídios no país, que chega a mais de 50 mil por ano, mais da metade (cerca de 53%), atinge jovens de 16 a 29 anos. A grande maioria desses homicídios é de jovens pretos e pardos (70%). Tem um problema racial colocado contra a juventude. A gente precisa desconstruir essa autorização maior da sociedade em relação a essa violência. O Subúrbio Ferroviário tem assassinato todo dia. Morre um policial e mata-se dez jovens negros. É preciso observar esse fenômeno dando um passo para trás. Esses casos chegam para nós e a gente tenta acompanhar.
CORREIO: Há uma relação entre jovens que cometem atos infracionais e a vulnerabilidade.
FP - A gente considera que um jovem que está muito exposto a uma situação de vulnerabilidade, de violência, numa comunidade que tenha pouco acesso a serviços públicos, a saneamento básico, tem poucas possibilidades de exercer os seus direitos. Um jovem que sofre violência em casa, um jovem que tá na rua porque sofreu violência em casa, um jovem que não teve direito a educação, que saiu da escola porque a escola não soube estimula-lo, um jovem que teve seus sonhos negados, a gente considera que ele é vítima. Um jovem que tá muito exposto a isso teve vários direitos violados - acesso à educação, à cultura, à mobilidade, à cidade...

CORREIO: A redução da maioridade penal é vista como uma saída por muitos...
FP - Tem projeto de lei tramitando querendo propor pena para jovem privado de liberdade que acaba sendo mais severa do que de preso comum. Mais do que prevê o código penal. Obviamente, o Governo Federal é contra a redução da maioridade. A lei de crimes hediondos, desde 1990 até agora, vem se tornando mais severa. Mas os crimes hediondos não diminuíram. Então, não se trata de mudar a lei, mas de aplicar a lei já existente de forma correta. As pessoas falam em relação a esses jovens. “Ah, é um bandido a menos”. Não é! Muitos não tinham passagem, muitos são inocentes que infelizmente estavam ali na mira de uma vingança. É preciso ter muito cuidado para não cair no lugar comum.

CORREIO: O que é possível fazer?
FP - É preciso acolher esse adolescente e esse jovem na sua condição de sujeito de direito. Esse menino faz isso, mas o que ele está passando no dia a dia dele? Quais os valores propagados pelos meios de comunicação? A gente tá falando de sujeitos que estão em formação de suas personalidades, que estão em formação de sua trajetória de inserção social. A gente precisa ter um olhar muito cuidadoso, mas sempre numa perspectiva preventiva. A gente está com nossas crianças mais protegidas graças a muitos esforços combinados, mas ao mesmo tempo esses meninos quando entram na adolescência ainda estão vulneráveis.

CORREIO: Então, a imagem que se construiu do jovem nos últimos anos não é real?
FP - A gente vê aí a revolta do buzu, que foi muito marcante aí em Salvador porque esse jovem não tem direito à cidade. Os 600 rolezinhos que foram criminalizados mostram que o jovem quer estar no espaço público para se socializar, para se divertir, para namorar. E isso não significa uma ameaça. Quando a gente junta esses fatores a gente vê que a imagem que a sociedade construiu em relação à periculosidade dos jovens realmente não passa de estigma.